Vidas em celas |
Movidas pela devoção a Deus ou levadas à força, mulheres pernambucanas do século XVIII iam morar em casas de recolhimento |
Suely Creusa Cordeiro de Almeida |
Uma beata, uma prostituta e duas escravas: o que estas mulheres aparentemente tão diferentes têm em comum? Elas viveram enclausuradas, durante parte de suas vidas, em recolhimentos no estado de Pernambuco no século XVIII. Essas casas tinham uma rotina bem parecida com a dos conventos e serviram para a educação feminina, para o aprisionamento e experiências de fé. O dia em um recolhimento começava às 5 horas da manhã, e grande parte dele era dedicado a orações e meditações. As atividades tinham horários rigorosos a serem cumpridos. Das 6h às 9h era o período dedicado à missa e aos sacramentos; às 14h eram rezadas as Vésperas (reza de agradecimento ao dia) e às 18h, a Ave-Maria. As instituições ensinavam não só a ler e a escrever, mas também caligrafia, regras de pontuação e ortografia, matemática, música e costura. Na hora de dormir, às 22h, a responsável pelo recolhimento acompanhava cada interna até sua cela. Destino comum de moças que não se casavam, o isolamento nessas instituições podia ter diversos motivos. A devota Lourença do Rosário, por exemplo, com sua profunda religiosidade, não decidiu simplesmente ir viver em um recolhimento: resolveu fundar um. Pôde construir o prédio que abrigou a instituição em terrenos doados que ganhou. Ficava no Beco do Paraíso, dentro do bairro popular de Afogados, no Recife. Mas sua trajetória não foi fácil. Muito pobre, a beata garantia com esmolas o seu sustento e o de outras mulheres que a acompanhavam. A casa, que recebia órfãs e donzelas, não tinha uma renda fixa, e precisava contar com donativos para se manter. A fé e a simplicidade de Lourença não podiam ser mais evidentes. Descalça, ela andava sempre com uma imagem do Menino Jesus nos braços, vestida com um hábito pobre e uma touca na cabeça. Além de abrigar mulheres, a instituição prestava vários serviços: oferecia educação não só para as internas, mas também para meninas pobres, inclusive expostas (deixadas para adoção), prestava socorro aos doentes, acompanhava famílias de luto e até puxava o ofício dos mortos quando não havia sacerdote. Os recolhimentos tinham a religião como elemento central, mas eram organizações leigas, não subordinadas a qualquer ordem religiosa. Uma das principais diferenças em relação a conventos era que as recolhidas não precisavam fazer votos de pobreza, obediência e castidade, e podiam sair a qualquer momento para se casar ou voltar para a casa de parentes. Se a vida da beata Lourença do Rosário foi exclusivamente dedicada à religião, não se pode dizer o mesmo da prostituta Joana de Jesus, uma “desregrada”, segundo a palavra usada na época. Parda, pobre e sem instrução, morou no Recife e na Vila de Goiana. Mas o contato com o jesuíta e missionário italiano Gabriel Malagrida (1689-1761) provocou uma mudança definitiva em sua trajetória. Arrependida de seus pecados depois de ouvir os sermões do padre, ela abandonou a profissão. Foi nesse momento que decidiu que a melhor maneira de deixar para trás a prostituição era se isolar no Recolhimento das Convertidas de Igarassu, próximo ao Recife. No recolhimento, habitava uma casinha de taipa e trabalhava como serva onde podia cozinhar, lavar e limpar a casa. Recolhia-se logo após cumprir suas tarefas e frequentemente fazia jejuns, comendo apenas uma vez por dia alimentos leves e em pequena quantidade. Dormia sobre a terra, tendo como cabeceira um madeiro em que se recostava. Certamente em busca de purificação, a ex-prostituta praticava a autopenitência: apertava o corpo com cilícios (corrente de metal com pontas, usada como instrumento de penitência) e açoitava-se. Quando meditava, chegava a entrar em transe. Os preceitos católicos eram seguidos à risca também no convívio social: era caridosa, trabalhadora, humilde e obediente, segundo depoimentos dos moradores de Vila de Igarassu a respeito dela, escritos por D. Domingos Loreto Couto. A doença e a proximidade da morte só fizeram acentuar a fé de Joana. Um dia antes do falecimento, em 11 de janeiro de 1754, um sábado, levantou-se da cama e passou todo o dia cantando louvores a Deus e a Maria Santíssima. Parecia que adivinhara seu destino. Seu rosto adquiriu tal esplendor que impressionou as outras recolhidas. Ao responder sobre o motivo de tanta alegria, disse que Deus lhe havia concedido descanso. No domingo, recebeu a unção dos enfermos e continuou seu louvor até as três horas da tarde, quando morreu. “Seu corpo ficou flexível, e seu rosto corado e com tanta formosura, que nela desapareceram todos os sinais da morte e os estragos causados pelos rigores da penitência”, relatou D. Domingos Loreto, no século XVIII, no livro Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. A descrição apresentava características comuns aos grandes místicos, o que atraiu grande curiosidade em seu funeral. Joana de Jesus buscou e, ao que parece, conseguiu salvação com a vida que escolheu levar dentro do recolhimento. Este foi o caso também de duas escravas – mãe e filha, uma negra e outra mulata. O nome das cativas é desconhecido, mas sabe-se que elas pertenciam a Antônio de Araújo, com quem viviam em concubinato. Mas elas passaram a entender este relacionamento como pecado e resolveram não mais ceder às investidas do senhor. O arrependimento e o desejo de servir a Deus, no entanto, não foram as únicas razões da opção pelo isolamento. O senhor as maltratava, um fato conhecido pela vizinhança do Recife. Certa vez, quando a mais nova se negou a dormir com Antônio, ele chegou a prendê-la no tronco pelo pescoço para castigá-la. Esta e outras histórias de violências cometidas por Antônio de Araújo correram de boca em boca até chegarem aos ouvidos do bispo de Pernambuco, D. Frei Luís de Santa Tereza, em 1753. O prelado procurou livrar as escravas daquela situação por meio dos tribunais portugueses, primeiramente o Conselho Ultramarino e, em seguida, a Mesa da Consciência e Ordem. O bispo pedia que as escravas fossem vendidas a preço justo, pois havia uma lei de 1688 que dizia que se fosse provado em tribunal que o senhor era cruel, ele teria a obrigação de vender os escravos maltratados. Outra lei do mesmo ano dava a qualquer um, inclusive aos escravos, o direito de denunciar seus senhores por maus-tratos. A demora de um veredicto, somada ao aumento dos castigos, fez com que as escravas fugissem, procurando abrigo junto ao bispo. Este mandou que elas procurassem o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição, em Olinda. Nem sempre as mulheres escolhiam ir para essas instituições. Branca e rica, Brite Manuela foi obrigada a se enclausurar. Ela era filha de João Paes Barreto, grande negociante da Companhia Geral de Pernambuco e dono de quatro engenhos no Cabo de Santo Agostinho. Acusada de manter uma “casa de alcouce” (um prostíbulo) com suas escravas e de se prostituir publicamente, foi mandada para o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição, em Olinda. Desde cedo sua vida foi conturbada. Brites Manuela se casou grávida, depois de mover um complicado processo que correu nos tribunais portugueses. Seu marido era João do Rego Barros, homem poderoso que foi fidalgo e Provedor da Casa Real, que administrava e controlava os gastos e as rendas reais. Ele foi obrigado pela Justiça portuguesa a casar para “reparar o erro”, mas os dois nunca chegaram a viver juntos. Até aí, pelo menos as aparências estavam salvas. Mas quando o marido e os pais de Brites Manuela morreram, ela se mudou do Cabo de Santo Agostinho e foi para o Recife, onde teria se prostituído. Naquela época, uma mulher pertencente à elite pernambucana não podia viver como bem entendesse. Suas ações constituiriam uma mácula na honra e no prestígio de sua família. Quando se transferiu para a vila de mala e cuia, Brites levou um adicional de escravas vindas das propriedades do irmão, Estevão Paes Barreto. Foi ele quem denunciou à Coroa portuguesa a fuga da irmã e suas supostas ações imorais. Em carta à rainha D. Maria, Estevão afirmava que Brites Manuela, além de proceder de modo indecente, havia lhe roubado escravos. Por fim, questionava a divisão dos bens feita após a morte dos pais. Por tudo isso, ela deveria ser impedida de agir como uma mulher desclassificada. Em síntese, a situação se resolveria entregando Brites Manuela a uma casa de clausura perpetuamente (com despesas pagas pela família). E assim foi feito. Ela ainda teve todos os bens confiscados. As histórias dessas mulheres são uma pequena parte de tudo que só as paredes das casas de recolhimento testemunharam. Vidas que, para algumas, foi de dedicação e fé, mas também provas de que não foram passivas em suas trajetórias. Fonte: RHBN |
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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
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