A revolta da farinha
No século XIX, em Salvador, políticos travaram duelo em torno do controle do preço da farinha, enquanto o povo promovia violentos distúrbios nas ruas.
João José Reis
Tudo começou com a publicação de uma postura (ou lei municipal) pela Câmara de Salvador. Ela estabelecia que a farinha de mandioca só poderia ser vendida em depósitos específicos (“tulhas”) em alguns pontos da cidade, e principalmente no Celeiro Público, espécie de mercado municipal. A intenção era controlar o preço do produto, protegendo-o da ação de atravessadores e monopolistas. A carestia da farinha, o “pão dos pobres”, afligia as classes populares. Foi um ano de seca catastrófica. Entre 1851 e 1858, o preço tinha subido cerca de 300%.
O presidente da província, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu (1810-1906), aprovou a postura, em caráter provisório, no início de 1857. Mas, no fundo, ele duvidava da solução proposta pela Câmara. Adepto do liberalismo econômico, ele achava que a livre concorrência era capaz de baixar os preços. Atendendo a reclamações de comerciantes, acabou suspendendo a medida em 25 de abril daquele ano, até que ela fosse examinada pela Assembléia Provincial. Reunidos em outubro para discutir a matéria, os deputados não chegaram a uma conclusão definitiva.
A disputa contrastava, de um lado, uma visão mais intervencionista do mercado, segundo a qual o governo devia proteger os cidadãos desfavorecidos contra os especuladores e estabelecer o preço “justo” dos alimentos, e de outro, o liberalismo, a doutrina do laissez-faire, que acreditava na lei da oferta e da procura para regular os preços.
Em janeiro de 1858, entendendo que já se esgotara o prazo para que a postura fosse revogada, os vereadores voltaram a editá-la sem o consentimento do presidente Sinimbu. No ofício que enviaram a ele comunicando a decisão, os vereadores insinuavam ter havido manobras junto à Assembléia contra sua aprovação. Denunciavam a existência de “um monopólio nos gêneros alimentícios e que este não pode ser destruído pela liberdade de comércio, porque nada vale esta liberdade quando não há e não se pode estabelecer a livre concorrência”. Dito isso, os vereadores restabeleceram a postura e mandaram afixá-la nas ruas e publicá-la nos jornais da cidade.
Câmara e Presidência de Província passaram um mês debatendo sobre quem mandava no mercado de Salvador. A população parecia acompanhar atentamente, por meio das conversas nos mercados, nas esquinas, tavernas, e também pelos jornais. Durante a noite, alguns mais radicais afixavam escritos nas paredes ameaçando de morte o presidente. Durante o dia, a polícia, sob controle do governo provincial, entrava em conflito com os fiscais da Câmara, que tentavam obrigar os comerciantes a cumprir a lei municipal. Temendo uma escalada das tensões, Sinimbu escreveu mais um ofício exigindo que a Câmara revogasse o edital, o que provocou resposta longa e altiva dos vereadores. Em resumo, segundo eles, o ato do presidente caracterizava abuso de poder. Exigiam respeito pela instituição “que representa o povo deste município”. No mesmo dia, 25 de fevereiro de 1858, o presidente decidiu suspender – pois tinha poderes para tal – os cinco vereadores que haviam assinado o documento, substituindo-os por seus suplentes.
Assim estava a situação quando, em 28 de fevereiro, explodiu uma manifestação de rua totalmente inesperada. Não era dia de feira, nem mesmo dia de se pensar muito em comida, pois se tratava do segundo domingo da Quaresma, tempo de jejum. Transcorria uma missa na igreja da Santa Casa da Misericórdia, a alguns passos da praça onde se localizavam a Câmara Municipal e o palácio do governo da província. De repente, gritos femininos chamaram a atenção dos fiéis e dos transeuntes. Eram as recolhidas da Santa Casa, moças solteiras, geralmente pobres, que protestavam contra a remoção de algumas delas para um convento, medida disciplinar provocada pela oposição que faziam às freiras francesas de São Vicente de Paulo, recém-contratadas para educá-las.
Alguns homens acudiram aos pedidos de socorro das jovens, invadiram a Misericórdia e brigaram por elas. As freiras tiveram que sair sob escolta e se refugiaram no palácio presidencial. Foi então que a pequena multidão que as seguia ganhou o reforço de novos adeptos, que de perseguidores de freiras se transformaram em manifestantes contra a carestia, gritando: “Queremos carne sem osso e farinha sem caroço!”, frase que veio a dar nome àquele movimento.
Soube-se depois que as moças também tinham queixas alimentares, pois as freiras haviam introduzido na Santa Casa uma dieta insossa e parca, que não fazia jus à reputação culinária de seu país. As recolhidas, que antes tinham comida de sobra – a ponto de serem acusadas de vendê-la a preços módicos para fregueses certos –, agora só tinham a mesma carne sem osso e farinha sem caroço do resto da população. Da Santa Casa para o palácio foi um passo, e dali para a Casa da Câmara, uma distância ainda menor. A multidão ocupou o prédio dando vivas à Câmara e ao povo, e a gritar foras ao presidente. Algumas pessoas subiram à torre, tocaram o sino convocando mais gente, e a praça foi ocupada para novos protestos contra Sinimbu.
O palácio foi apedrejado, vidros de suas janelas foram quebrados, um oficial militar ficou ferido. A tropa, inclusive a cavalaria, atacou a multidão com baionetas e espadas. Recebeu pedradas em troco. Muitos saíram feridos, alguns gravemente. Os ânimos só serenaram com o cair da noite, tendo durado a refrega umas quatro horas.
No dia seguinte, novos conflitos ocorreram na praça do palácio. Naquela segunda-feira, 1º de março, a Câmara, agora composta na sua maioria por suplentes, se reuniria para discutir as ordens de Sinimbu que proibiam a postura. Às 10 horas já havia uma pequena concentração popular na praça, que estava tomada por guardas nacionais e tropas do Exército. Iniciada a sessão da Câmara, os populares começaram novamente a gritar contra a carestia e logo ocupavam a sala onde se reuniam os vereadores. O presidente da Câmara parece haver solicitado a presença de força militar para desocupar o prédio e permitir a normalidade dos trabalhos. Sob protestos, os manifestantes se retiraram para a praça, onde se repetiram as cenas do dia anterior, com muitas prisões durante e depois dos confrontos.
Enquanto isso, no interior da Câmara a ordem presidencial era acatada por unanimidade. Em seguida, para não passar a impressão de capitulação absoluta, o vereador e tenente-coronel Manoel José de Magalhães sugeriu que se estudasse a criação de uma companhia dedicada ao fornecimento de alimentos. A proposta foi aprovada e uma comissão levou-a ao presidente da província. Mas Sinimbu avisou que nenhuma medida seria tomada enquanto não se amainassem “os espíritos [que] se achavam agitados pela comoção popular”. E conclamou o povo a retornar a seus afazeres cotidianos e confiar na Câmara e no governo, que juntos procurariam uma solução “para minorar o mal, de que o mesmo povo se queixava”.
Naquele mesmo dia, enquanto os suplentes capitulavam, Manoel Jerônimo Ferreira, juiz de paz e um dos vereadores suspensos, escreveu uma carta dura ao presidente, acusando-o de servir a um pequeno círculo de monopolistas em detrimento da população, e ser “somente dominado pelos princípios econômicos, que tanto peso têm para V. Exa., e essa liberdade comercial tantas vezes invocada”. Advertia-o de que a doutrina liberal não estava dando certo. “O Povo”, ele escreveu, “não vive de teorias, vive de realidades”. E embora achasse ilegal a suspensão de seu mandato, Ferreira afirmou que a acataria, para não ter o presidente pretexto para vingar-se contra ele, como tinha feito contra a população indefesa, dispersando-a a baionetas e patas de cavalos, agindo com “o mais feroz canibalismo”. E os ataques continuaram no dia seguinte, quando Ferreira afirmou que Sinimbu havia instalado na Bahia “a mais abominável ditadura”.
O presidente, entretanto, não estava só. Contava com forte apoio dos negociantes reunidos na Associação Comercial, que saíram em defesa do presidente e do livre mercado. Sobre o que se poderia fazer para baixar o preço da farinha, escreveram seus dirigentes que não haveria “meio nenhum senão a concorrência entre os diversos vendedores deste artigo”. Lamentavam a injustiça que a cidade estava fazendo com o presidente, por promover a livre concorrência, e com os comerciantes, por concorrerem livremente.
Os vereadores não achavam a concorrência assim tão livre. Segundo eles, três ou quatro comerciantes definiam o abastecimento, e assim controlavam os preços da farinha e da carne fresca em Salvador. Esses monopolistas, segundo denúncia de pequenos comerciantes de farinha, eram portugueses que tinham tulhas dentro do Celeiro Público operadas por africanos libertos e escravos, “os quais, apenas chegam os barcos, compram por atacado o carregamento”, que vinha em barcos do Recôncavo, do sul da Bahia e de outras províncias do Brasil. Desse modo, os portugueses sempre se achavam “sortidos de farinha”, que era “marcada pelo preço que lhes parece”. O campo da disputa estava bem delimitado: de um lado, os “brasileiros natos”, que estavam perdendo, de outro os estrangeiros, que venciam.
Embora tivesse vencido os manifestantes e a Câmara, três meses depois Sinimbu partiria para o Rio de Janeiro, onde assumiria uma cadeira no Senado e no ano seguinte se tornaria ministro dos Negócios Estrangeiros. Felizmente, partiu antes do 2 de julho, aniversário da independência na Bahia. Corriam rumores de que se planejava uma revolta contra ele nesta data cívica local, em que se celebrava com grandes manifestações populares a baianidade, o nativismo e a antipatia aos estrangeiros – Sinimbu era considerado um deles, assim como os comerciantes de farinha portugueses, sem falar nas freiras francesas.
Na Bahia de 1858, a luta contra a carestia se misturou com a luta em torno de direitos políticos, ganhando uma linguagem de defesa da cidadania. Como escrevera o vereador Manoel Ferreira, os manifestantes não se opuseram apenas a uma abstrata doutrina do livre mercado, a um poder provincial que não estava respondendo a suas demandas por comida barata. Se o povo apostava na proteção da Câmara, também acreditava que precisava proteger a Câmara. Essa relação de reciprocidade refletia um processo de construção da cidadania do homem livre pobre da cidade. Nisso – e no direito à comida barata – residia a legitimidade do movimento.
Antes de ele estourar, já ocorria uma mobilização popular de insatisfação. Durante semanas, atividades subterrâneas – e noturnas – indicavam alguma organização de contestação. Pasquins apareceram afixados nas ruas ameaçando de morte o presidente. Grupos organizados de trabalhadores escreveram petições ao presidente e a outras autoridades contra os baixos salários e os preços exorbitantes dos alimentos. Durante os conflitos, despontaram lideranças populares, que certamente não se fazem de uma hora para outra. O guarda nacional Santana incitou o povo contra as irmãs da Santa Casa. O carpinteiro Justiniano gabou-se publicamente de participação ativa no motim.
O que aconteceu em 1858 foi uma reedição, com as devidas inovações, de uma tradição da Bahia rebelde que vinha desde o final do século XVIII, com a conspiração dos alfaiates. Outras revoltas pontilharam a província nas décadas de 1820 e 1830. Nelas, a primeira ação dos manifestantes era ocupar a Câmara e convocar o povo, em geral com o toque do sino, tal como ocorreu por ocasião do motim da fome. O ato de tocar o sino emprestava dimensão ritual aos movimentos políticos, chamando os habitantes para abraçar alguma causa. Nessas horas, a casa da Câmara de fato simbolizava o poder popular. Houve, então, uma dimensão política no movimento de 1858.
Assim, não basta levar em conta apenas a barriga do povo e a cabeça do governo para explicar o motim da “carne sem osso e farinha sem caroço”. Uma rede complexa de comportamentos, necessidades e interesses balançou Salvador durante aqueles dois dias. E um acaso. É provável que o motim não tivesse ocorrido, ou o tivesse de outro modo, sem o incidente com as moças da Misericórdia e a disputa envolvendo a Câmara e o presidente. Em movimentos desse tipo, a carestia é uma condição necessária, mas não suficiente. Talvez isso explique por que no ano seguinte, quando o preço da farinha bateu o recorde da década, Salvador manteve-se em paz.
Em junho de 1858, logo após a saída de Sinimbu da Bahia, o vice-presidente em exercício, desembargador Manoel Messias de Leão, aprovou a postura da Câmara, e em outubro a Assembléia Provincial a ratificou. Mas a carestia persistiu. Em novembro, o pedreiro Theodosio da Costa Lima, que se ocupava de obras públicas, já desistira de acreditar na capacidade das autoridades locais de resolver seu problema e escreveu diretamente ao imperador, esse protetor distante, pedindo aumento salarial. Sua remuneração, queixou-se, “na época atual, quando a carestia nos aperta em seus braços de ferro, não pode chegar para a alimentação de uma família grandiosa”.
Fonte: RHBN