terça-feira, 24 de maio de 2011

Versos negros

Por meio de um manifesto intitulado ABC, uma seita cristã ensinava os “morenos” a ler e questionava a dominação dos brancos

Marcus J. M. de Carvalho



Agostinho José Pereira era um negro livre que vivia no Recife sem nunca ter sofrido os maus-tratos do cativeiro. Segundo ele mesmo, nascera livre. Mas perdeu a liberdade em 1846, quando foi preso pela polícia. O motivo alegado para a prisão era o fato de ele ter fundado uma nova seita cristã na cidade, ficando conhecido por seus mais de 300 seguidores como “Divino Mestre”. Mas o que chamou a atenção das autoridades foi o ABC, uns versos encontrados com a esposa de Agostinho. O ABC é o mais antigo manifesto de que se tem notícia que contesta explicitamente a dominação racial branca no Brasil, pregando a revolução. Com um detalhe: seu autor era alguém que se intitulava “moreno”. Agostinho negou a autoria do ABC, mas admitiu o que todos já sabiam: ele ensinava seus seguidores a ler. 

O ABC pode muito bem ter sido um recurso didático. No interrogatório do Divino Mestre, a maior preocupação dos desembargadores do Tribunal da Relação era a possível repercussão daqueles versos entre os negros e pardos do Recife. Isso numa época em que estavam ocorrendo algumas das manifestações nativistas que antecederam a Insurreição Praieira, em 1848. Os mata-marinheiros – manifestações nativistas contra os portugueses, os “marinheiros” propriamente ditos – de 1844 a 1848 ajudaram a população livre pobre a enxergar os europeus como inimigos dos brasileiros.

O liberal radical Borges da Fonseca insuflou a massa nessas manifestações nativistas e também atuou como advogado de defesa de Agostinho. Segundo seu pedido de habeas corpus para os dezesseis negros presos pela polícia, não havia motivo para tanto alarde. Eles eram apenas “cismáticos”, dissidentes da Igreja Católica. Nada demais, portanto, em uma cidade onde a igreja anglicana despontava como um dos principais edifícios da nobre Rua da Aurora, apesar da legislação que impunha aos não católicos a obrigação de praticar seus cultos discretamente. Mas para a polícia pernambucana, a seita era apenas um disfarce para se preparar uma insurreição, e as reuniões promovidas por Agostinho estavam ligadas a sociedades secretas em outras províncias com o objetivo de promover uma rebelião de negros e escravos.

Todos os seguidores de Agostinho eram negros. Alguns escravos, mas a maioria, segundo os depoimentos, era de libertos e livres. No ato de sua prisão, outros quinze negros foram detidos com o Divino Mestre. Um deles só foi preso porque pediu, pois queria acompanhar o líder naquele infortúnio. No interrogatório, todos se comportaram com altivez, reconhecendo que o cristianismo deles era diferente daquele da Igreja Católica, pois não acreditavam nos sacramentos nem nos santos, que para eles eram meras estátuas. Entre os detidos havia africanos libertos e também mulheres, que formavam a maioria dos seguidores de Agostinho. Uma das detidas era sua esposa. Uma outra, a “Madalena” da seita. Todos os interrogados sabiam ler. Em uma cidade onde a maioria dos homens livres era certamente analfabeta, isso era surpreendente para os desembargadores que interrogaram os detidos. Os presos diziam que tinham aprendido as escrituras por conta própria ou por inspiração divina, e não apenas por meio da catequese do Divino Mestre. 

O ABC simplesmente anunciava que a escravidão da “linda nobre cor morena” chegaria em breve ao fim, depois de mais de 300 anos. Pregava que não só Adão, mas Moisés, Abraão e Cristo eram morenos. Não ignorava a hipocrisia da política imperial, pois “juraste uma constituição (...) que só pede gente livre, e nós na escravidão.” Lembrava do Haiti – onde os escravos se revoltaram em 1791, massacraram a classe senhorial branca e proclamaram a independência em 1804 – e vaticinava que a liberdade viria em breve e que haveria uma inversão total. Literalmente, dizia da classe senhorial: “Fácil é serem sujeitos de quem já foram senhores”. E tudo voltaria a ser como deveria, como fora antes, pois “no princípio do mundo, os reis eram morenos”.

Depois de amargar pelo menos 37 dias na cadeia, o Divino Mestre finalmente foi solto. A partir dali, ele e seus seguidores passaram a ser perseguidos pela população católica, que os apedrejava, certamente com o apoio das autoridades que temiam os “cismáticos”. Não se sabe o que aconteceu com Agostinho depois. É provável que tenha sido recrutado e mandado para bem longe como soldado. No seu interrogatório, deixou clara sua longa vivência na política imperial. Confessou que participara da Confederação do Equador, em 1824, como oficial de milícias, mas não por vontade própria e sim por “obediência” ao então comandante das armas. 

Para completar seu currículo revolucionário, admitiu que estivera na Bahia em 1839, e embora tenha dito que não participou da Sabinada, admitiu que conhecera o próprio Sabino, mas porque o líder da Sabinada estava preso na fortaleza onde ele servia então como miliciano. O ABC foi o seu legado para a posteridade, provando que os negros e pardos do Recife tinham uma visão própria do momento que estavam vivendo e não se submetiam facilmente ao cativeiro.

Fonte: RHBN

A revolta da farinha

No século XIX, em Salvador, políticos travaram duelo em torno do controle do preço da farinha, enquanto o povo promovia violentos distúrbios nas ruas.

João José Reis



Tudo começou com a publicação de uma postura (ou lei municipal) pela Câmara de Salvador. Ela estabelecia que a farinha de mandioca só poderia ser vendida em depósitos específicos (“tulhas”) em alguns pontos da cidade, e principalmente no Celeiro Público, espécie de mercado municipal. A intenção era controlar o preço do produto, protegendo-o da ação de atravessadores e monopolistas. A carestia da farinha, o “pão dos pobres”, afligia as classes populares. Foi um ano de seca catastrófica. Entre 1851 e 1858, o preço tinha subido cerca de 300%.

O presidente da província, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu (1810-1906), aprovou a postura, em caráter provisório, no início de 1857. Mas, no fundo, ele duvidava da solução proposta pela Câmara. Adepto do liberalismo econômico, ele achava que a livre concorrência era capaz de baixar os preços. Atendendo a reclamações de comerciantes, acabou suspendendo a medida em 25 de abril daquele ano, até que ela fosse examinada pela Assembléia Provincial. Reunidos em outubro para discutir a matéria, os deputados não chegaram a uma conclusão definitiva. 

A disputa contrastava, de um lado, uma visão mais intervencionista do mercado, segundo a qual o governo devia proteger os cidadãos desfavorecidos contra os especuladores e estabelecer o preço “justo” dos alimentos, e de outro, o liberalismo, a doutrina do laissez-faire, que acreditava na lei da oferta e da procura para regular os preços.

Em janeiro de 1858, entendendo que já se esgotara o prazo para que a postura fosse revogada, os vereadores voltaram a editá-la sem o consentimento do presidente Sinimbu. No ofício que enviaram a ele comunicando a decisão, os vereadores insinuavam ter havido manobras junto à Assembléia contra sua aprovação. Denunciavam a existência de “um monopólio nos gêneros alimentícios e que este não pode ser destruído pela liberdade de comércio, porque nada vale esta liberdade quando não há e não se pode estabelecer a livre concorrência”. Dito isso, os vereadores restabeleceram a postura e mandaram afixá-la nas ruas e publicá-la nos jornais da cidade.

Câmara e Presidência de Província passaram um mês debatendo sobre quem mandava no mercado de Salvador. A população parecia acompanhar atentamente, por meio das conversas nos mercados, nas esquinas, tavernas, e também pelos jornais. Durante a noite, alguns mais radicais afixavam escritos nas paredes ameaçando de morte o presidente. Durante o dia, a polícia, sob controle do governo provincial, entrava em conflito com os fiscais da Câmara, que tentavam obrigar os comerciantes a cumprir a lei municipal. Temendo uma escalada das tensões, Sinimbu escreveu mais um ofício exigindo que a Câmara revogasse o edital, o que provocou resposta longa e altiva dos vereadores. Em resumo, segundo eles, o ato do presidente caracterizava abuso de poder. Exigiam respeito pela instituição “que representa o povo deste município”. No mesmo dia, 25 de fevereiro de 1858, o presidente decidiu suspender – pois tinha poderes para tal – os cinco vereadores que haviam assinado o documento, substituindo-os por seus suplentes. 

Assim estava a situação quando, em 28 de fevereiro, explodiu uma manifestação de rua totalmente inesperada. Não era dia de feira, nem mesmo dia de se pensar muito em comida, pois se tratava do segundo domingo da Quaresma, tempo de jejum. Transcorria uma missa na igreja da Santa Casa da Misericórdia, a alguns passos da praça onde se localizavam a Câmara Municipal e o palácio do governo da província. De repente, gritos femininos chamaram a atenção dos fiéis e dos transeuntes. Eram as recolhidas da Santa Casa, moças solteiras, geralmente pobres, que protestavam contra a remoção de algumas delas para um convento, medida disciplinar provocada pela oposição que faziam às freiras francesas de São Vicente de Paulo, recém-contratadas para educá-las.

Alguns homens acudiram aos pedidos de socorro das jovens, invadiram a Misericórdia e brigaram por elas. As freiras tiveram que sair sob escolta e se refugiaram no palácio presidencial. Foi então que a pequena multidão que as seguia ganhou o reforço de novos adeptos, que de perseguidores de freiras se transformaram em manifestantes contra a carestia, gritando: “Queremos carne sem osso e farinha sem caroço!”, frase que veio a dar nome àquele movimento.

Soube-se depois que as moças também tinham queixas alimentares, pois as freiras haviam introduzido na Santa Casa uma dieta insossa e parca, que não fazia jus à reputação culinária de seu país. As recolhidas, que antes tinham comida de sobra – a ponto de serem acusadas de vendê-la a preços módicos para fregueses certos –, agora só tinham a mesma carne sem osso e farinha sem caroço do resto da população. Da Santa Casa para o palácio foi um passo, e dali para a Casa da Câmara, uma distância ainda menor. A multidão ocupou o prédio dando vivas à Câmara e ao povo, e a gritar foras ao presidente. Algumas pessoas subiram à torre, tocaram o sino convocando mais gente, e a praça foi ocupada para novos protestos contra Sinimbu.

O palácio foi apedrejado, vidros de suas janelas foram quebrados, um oficial militar ficou ferido. A tropa, inclusive a cavalaria, atacou a multidão com baionetas e espadas. Recebeu pedradas em troco. Muitos saíram feridos, alguns gravemente. Os ânimos só serenaram com o cair da noite, tendo durado a refrega umas quatro horas.

No dia seguinte, novos conflitos ocorreram na praça do palácio. Naquela segunda-feira, 1º de março, a Câmara, agora composta na sua maioria por suplentes, se reuniria para discutir as ordens de Sinimbu que proibiam a postura. Às 10 horas já havia uma pequena concentração popular na praça, que estava tomada por guardas nacionais e tropas do Exército. Iniciada a sessão da Câmara, os populares começaram novamente a gritar contra a carestia e logo ocupavam a sala onde se reuniam os vereadores. O presidente da Câmara parece haver solicitado a presença de força militar para desocupar o prédio e permitir a normalidade dos trabalhos. Sob protestos, os manifestantes se retiraram para a praça, onde se repetiram as cenas do dia anterior, com muitas prisões durante e depois dos confrontos.

Enquanto isso, no interior da Câmara a ordem presidencial era acatada por unanimidade. Em seguida, para não passar a impressão de capitulação absoluta, o vereador e tenente-coronel Manoel José de Magalhães sugeriu que se estudasse a criação de uma companhia dedicada ao fornecimento de alimentos. A proposta foi aprovada e uma comissão levou-a ao presidente da província. Mas Sinimbu avisou que nenhuma medida seria tomada enquanto não se amainassem “os espíritos [que] se achavam agitados pela comoção popular”. E conclamou o povo a retornar a seus afazeres cotidianos e confiar na Câmara e no governo, que juntos procurariam uma solução “para minorar o mal, de que o mesmo povo se queixava”.

Naquele mesmo dia, enquanto os suplentes capitulavam, Manoel Jerônimo Ferreira, juiz de paz e um dos vereadores suspensos, escreveu uma carta dura ao presidente, acusando-o de servir a um pequeno círculo de monopolistas em detrimento da população, e ser “somente dominado pelos princípios econômicos, que tanto peso têm para V. Exa., e essa liberdade comercial tantas vezes invocada”. Advertia-o de que a doutrina liberal não estava dando certo. “O Povo”, ele escreveu, “não vive de teorias, vive de realidades”. E embora achasse ilegal a suspensão de seu mandato, Ferreira afirmou que a acataria, para não ter o presidente pretexto para vingar-se contra ele, como tinha feito contra a população indefesa, dispersando-a a baionetas e patas de cavalos, agindo com “o mais feroz canibalismo”. E os ataques continuaram no dia seguinte, quando Ferreira afirmou que Sinimbu havia instalado na Bahia “a mais abominável ditadura”.

O presidente, entretanto, não estava só. Contava com forte apoio dos negociantes reunidos na Associação Comercial, que saíram em defesa do presidente e do livre mercado. Sobre o que se poderia fazer para baixar o preço da farinha, escreveram seus dirigentes que não haveria “meio nenhum senão a concorrência entre os diversos vendedores deste artigo”. Lamentavam a injustiça que a cidade estava fazendo com o presidente, por promover a livre concorrência, e com os comerciantes, por concorrerem livremente. 

Os vereadores não achavam a concorrência assim tão livre. Segundo eles, três ou quatro comerciantes definiam o abastecimento, e assim controlavam os preços da farinha e da carne fresca em Salvador. Esses monopolistas, segundo denúncia de pequenos comerciantes de farinha, eram portugueses que tinham tulhas dentro do Celeiro Público operadas por africanos libertos e escravos, “os quais, apenas chegam os barcos, compram por atacado o carregamento”, que vinha em barcos do Recôncavo, do sul da Bahia e de outras províncias do Brasil. Desse modo, os portugueses sempre se achavam “sortidos de farinha”, que era “marcada pelo preço que lhes parece”. O campo da disputa estava bem delimitado: de um lado, os “brasileiros natos”, que estavam perdendo, de outro os estrangeiros, que venciam.

Embora tivesse vencido os manifestantes e a Câmara, três meses depois Sinimbu partiria para o Rio de Janeiro, onde assumiria uma cadeira no Senado e no ano seguinte se tornaria ministro dos Negócios Estrangeiros. Felizmente, partiu antes do 2 de julho, aniversário da independência na Bahia. Corriam rumores de que se planejava uma revolta contra ele nesta data cívica local, em que se celebrava com grandes manifestações populares a baianidade, o nativismo e a antipatia aos estrangeiros – Sinimbu era considerado um deles, assim como os comerciantes de farinha portugueses, sem falar nas freiras francesas. 

Na Bahia de 1858, a luta contra a carestia se misturou com a luta em torno de direitos políticos, ganhando uma linguagem de defesa da cidadania. Como escrevera o vereador Manoel Ferreira, os manifestantes não se opuseram apenas a uma abstrata doutrina do livre mercado, a um poder provincial que não estava respondendo a suas demandas por comida barata. Se o povo apostava na proteção da Câmara, também acreditava que precisava proteger a Câmara. Essa relação de reciprocidade refletia um processo de construção da cidadania do homem livre pobre da cidade. Nisso – e no direito à comida barata – residia a legitimidade do movimento. 

Antes de ele estourar, já ocorria uma mobilização popular de insatisfação. Durante semanas, atividades subterrâneas – e noturnas – indicavam alguma organização de contestação. Pasquins apareceram afixados nas ruas ameaçando de morte o presidente. Grupos organizados de trabalhadores escreveram petições ao presidente e a outras autoridades contra os baixos salários e os preços exorbitantes dos alimentos. Durante os conflitos, despontaram lideranças populares, que certamente não se fazem de uma hora para outra. O guarda nacional Santana incitou o povo contra as irmãs da Santa Casa. O carpinteiro Justiniano gabou-se publicamente de participação ativa no motim. 

O que aconteceu em 1858 foi uma reedição, com as devidas inovações, de uma tradição da Bahia rebelde que vinha desde o final do século XVIII, com a conspiração dos alfaiates. Outras revoltas pontilharam a província nas décadas de 1820 e 1830. Nelas, a primeira ação dos manifestantes era ocupar a Câmara e convocar o povo, em geral com o toque do sino, tal como ocorreu por ocasião do motim da fome. O ato de tocar o sino emprestava dimensão ritual aos movimentos políticos, chamando os habitantes para abraçar alguma causa. Nessas horas, a casa da Câmara de fato simbolizava o poder popular. Houve, então, uma dimensão política no movimento de 1858.

Assim, não basta levar em conta apenas a barriga do povo e a cabeça do governo para explicar o motim da “carne sem osso e farinha sem caroço”. Uma rede complexa de comportamentos, necessidades e interesses balançou Salvador durante aqueles dois dias. E um acaso. É provável que o motim não tivesse ocorrido, ou o tivesse de outro modo, sem o incidente com as moças da Misericórdia e a disputa envolvendo a Câmara e o presidente. Em movimentos desse tipo, a carestia é uma condição necessária, mas não suficiente. Talvez isso explique por que no ano seguinte, quando o preço da farinha bateu o recorde da década, Salvador manteve-se em paz. 

Em junho de 1858, logo após a saída de Sinimbu da Bahia, o vice-presidente em exercício, desembargador Manoel Messias de Leão, aprovou a postura da Câmara, e em outubro a Assembléia Provincial a ratificou. Mas a carestia persistiu. Em novembro, o pedreiro Theodosio da Costa Lima, que se ocupava de obras públicas, já desistira de acreditar na capacidade das autoridades locais de resolver seu problema e escreveu diretamente ao imperador, esse protetor distante, pedindo aumento salarial. Sua remuneração, queixou-se, “na época atual, quando a carestia nos aperta em seus braços de ferro, não pode chegar para a alimentação de uma família grandiosa”. 

Fonte: RHBN

Sangue no mato

Em violentas batalhas, índios e escravos da floresta resistiram às investidas do governo sobre suas terras. A Cabanada queria a volta de D. Pedro I

Marcus J. M. de Carvalho



Uma guerra pode ter várias motivações. Enquanto alguns lutam por causas coletivas, como a independência política, outros se entregam a necessidades muito mais básicas e imediatas. Como terra, comida e o direito de viver “no mato”.

No turbulento período regencial – entre a abdicação de D. Pedro I (1831) e a maioridade de D. Pedro II (1840) –, vários conflitos sangrentos sacudiram o país. Boa parte consagrada nos livros didáticos: Balaiada, Sabinada, Guerra dos Farrapos. Mas um deles, ao contrário, permanece quase esquecido e provoca confusão por uma semelhança de nomes: a Cabanada aconteceu entre Pernambuco e Alagoas – e batizou a cabanagem, ocorrida no Pará anos depois.

Diferente de todas as outras, a Cabanada não foi uma contestação ao regime imperial autoritário, nem ambicionava a independência regional. Foi uma guerra das “gentes do mato” – índios, escravos, posseiros – em defesa de sua porção de terra.  

Tudo começou bem longe dali, na cidade, e com motivação política. Em abril de 1832, no Recife, houve um levante de militares de alta patente e proprietários rurais. Eles estavam insatisfeitos com a reviravolta ocorrida desde a abdicação de D. Pedro I. A volta do imperador para Portugal provocara a anistia dos remanescentes da Confederação do Equador, que lutara pela independência da região em 1824. Agora, aqueles que haviam combatido a revolução e garantido a manutenção do regime perdiam o poder na província para seus adversários. Parte da elite local amotinou-se contra o novo governo provincial, mas foi facilmente derrotada. 

O problema é que os proprietários rurais também haviam distribuído armas para escravos e índios no interior, pensando em tê-los como fiéis vassalos na batalha. Por isso, o governo decidiu mandar um exército com mais de mil homens em direção à divisa com Alagoas, para enquadrar a chamada “gente das matas”, os habitantes das florestas, que viviam à margem da economia local, baseada na cana-de-açúcar e no plantio de algodão. Sua resistência à investida foi imediata e brutal. 

As autoridades militares começaram a chamar os rebeldes de “cabanos”, uma referência às cabanas em que viviam. Quando começaram a levar vantagem contra as tropas oficiais, no final de 1832, tornou-se pública a figura de seu principal líder: Vicente de Paula. É desses personagens que deixam um rastro de mistério sobre sua vida pessoal. Do pouco que se sabe de suas origens, ele próprio afirmou certa vez que era filho de um padre de Goiana, importante vila perto da divisa com a Paraíba. As autoridades o acusavam de ser um “ladrão de escravos”. Mas se tivesse vendido alguns dos inúmeros escravos que diziam ter “roubado”, ou mesmo os colocado para trabalhar em seu proveito, teria se tornado um homem rico. A acusação era, na verdade, um eufemismo para encobrir a escolha feita espontaneamente pelos cativos, que optavam por deixar os engenhos e eram assimilados pelos cabanos. Ainda que obrigados a obedecer à hierarquia do grupo, sua situação passava a ser muito diferente da escravidão. Era, isto sim, o começo da liberdade. 

Em seus manifestos, os cabanos eram claros. Lutavam pela volta de Pedro I, pela Igreja e contra os “jacubinos” [sic], que, segundo diziam, haviam se apropriado do governo após derrubarem o legítimo imperador. O que eles buscavam era manter suas terras contra os proprietários rurais que passaram a invadir as florestas, cuja madeira era antes reservada à Marinha Imperial. Muitos habitantes das matas haviam sido recompensados por sua participação na repressão às revoltas contra o imperador, e agora temiam represálias. Era o caso dos índios de Jacuípe. Os escravos envolvidos, por sua vez, tinham outra demanda específica: lutavam pela nova condição adquirida após serem “roubados” por Vicente de Paula. 

Em fevereiro de 1833, o comandante das Armas de Pernambuco, José Joaquim da Silva Santiago, pensava em simplesmente exterminar os revoltosos, caso não se rendessem. Foi com esse objetivo que mandou afixar nas árvores uma proclamação endereçada aos cabanos, na qual eram tratados, logo no preâmbulo, por “brasileiros degenerados”. Mas a “gente das matas” não se deixou intimidar. Foram capazes de retomar a povoação de Jacuípe, onde antes viviam os índios e que se tornou o quartel-general das tropas do governo. Também lutaram para conquistar o porto natural de Barra Grande, à espera de uma esquadra que, acreditavam, traria de volta Pedro I. Naquele mesmo ponto havia aportado a esquadra imperial para reprimir a Insurreição Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador em 1824. Por isso ele era considerado estratégico pelos cabanos, que dali desferiram vários ataques. Tanto Barra Grande como Porto Calvo, centro das operações contra o Quilombo de Palmares, destruído em 1695, foram tomados e perdidos pelos cabanos em sucessivos combates.

Vicente de Paula costumava assinar “General” ou “Comandante de Todas as Matas”. Às vezes, com mais pompa ainda, proclamava-se “Comandante Geral do Imperial Exército de Sua Majestade Imperial Dom Pedro I”. Em 1833, afirmou que comandava um exército de 3.550 homens. Um exagero, segundo os adversários, que estimavam que o batalhão sob seu comando direto tinha cerca de 600 homens, embora reconhecessem que estes estavam bem armados e eram treinados na arte da guerra. Vicente de Paula tinha outro trunfo: navegava, soberbo, pelos labirintos das matas. Suas tropas surgiam de onde eram menos esperadas, tomando posições importantes, espalhando o terror e matando inúmeros guardas nacionais e soldados de primeira linha. O batalhão mais temido era o dos “papa-méis”, totalmente formado por escravos “roubados” por ele. 

Sempre que podiam, os cabanos levavam consigo seus mortos, tal como antes faziam os povos nativos em luta contra os conquistadores do Brasil. Muitos usavam camisas “tintas”, ou seja, da cor de vinho tinto, como uma espécie de farda. Era imensa sua ousadia. Certa vez, um cabano foi capturado. Estava “amarelo” e famélico. Depois de alimentado, diante da promessa de anistia, pediu para ir buscar a família, que deixara escondida em uma caverna. Mas qual não foi a surpresa do comandante geral das tropas do governo quando, ao se distanciar do acampamento militar, o homem subiu em um outeiro e disparou os mais terríveis impropérios contra o oficial, desaparecendo depois na floresta.

A morte de Pedro I, em 1834, pôs fim à Cabanada. Mas não sem luta. Naquele ano, os presidentes de Pernambuco e de Alagoas, Manoel de Carvalho Paes de Andrade e Antonio Pinto Chichorro da Gama, reuniram-se para traçar uma estratégia conjunta. Contavam com mais de quatro mil homens. Decidiram cercar o perímetro das matas, espalhar proclamações e prometer anistia aos que se rendessem. Os que não aceitassem a oferta seriam mortos. Segundo o comandante geral das operações, coronel Joaquim José Luís de Souza, o único jeito de pegar os cabanos era na tocaia, como se fazia com veados do mato.

A nova estratégia deu certo. Todas as cabanas, lavouras e animais encontrados foram destruídos pelas tropas do governo. Em certo local, encontraram um galo cuja boca havia sido fechada com arame para que não revelasse, com o canto, onde estavam seus donos. O bispo de Pernambuco colaborou com a repressão, mobilizando um pequeno exército de padres para pregar na área do conflito, asseverando que Pedro I estava morto e que a Regência não era contra o cristianismo. Pouco a pouco, os cabanos foram se rendendo, inclusive os índios de Jacuípe, considerados os rebeldes mais “ferozes”. 

Todos foram anistiados, menos Vicente de Paula. As autoridades queriam-no morto ou preso. Mas não conseguiram capturá-lo. Na última vez em que foi visto, submergia na escuridão das matas acompanhado por seus leais “papa-méis”, reduzidos a menos de 100 homens. 

Anos depois do fim da Cabanada, em 1842, frei José Plácido de Messina andou dias na mata fechada, em busca da povoação fundada por Vicente de Paula com os remanescentes dos cabanos, chamada Riachão do Mato. Ficou surpreso com a quantidade de gente que encontrou. Frei Messina batizou e casou centenas de pessoas que “viviam em pecado”, pois praticavam com freqüência o “despique”, nome que davam à troca de parceiros. À frente da comunidade, Vicente de Paula foi descrito pelo frei como um “semi-branco” paupérrimo, apesar da imensa deferência que todos lhe devotavam.

Mas o líder cabano não desapareceu da vida pública. Na década de 1840, voltou a se envolver na política de Pernambuco e de Alagoas. Não era incomum ser chamado de “caudilho” pelas autoridades provinciais. Principalmente depois de 1844, quando invadiu a capital de Alagoas com uma tropa de cavaleiros, em favor de um dos partidos em contenda. Depois se retirava para o interior, voltando a “roubar” escravos. Chegou a flertar com a legalidade, como quando escreveu às autoridades de Pernambuco tentando obter uma patente na Guarda Nacional. Demonstrava assim que aceitava ser assimilado à ordem, desde que com um status condizente com seu imenso poder pessoal. 

Durante a Insurreição Praieira, em 1848, tanto os líderes do Partido Liberal quanto os do Partido Conservador tentaram obter sua adesão, escrevendo-lhe cartas em tom respeitoso. Ambas as facções entendiam a influência que ele tinha sobre a “gente das matas”. Vicente de Paula aproveitou o momento para sair novamente das matas e... “roubar” mais escravos. Nomeado presidente de Pernambuco logo após aquela revolta, o marquês do Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, resolveu prendê-lo a qualquer custo. Atraído para uma reunião, provavelmente com a promessa de que seria anistiado, Vicente de Paula finalmente acabou preso, ficando em Fernando de Noronha. Ali, ainda liderou uma rebelião em 1853. Ao ser solto em 1861, tinha 70 anos de idade.

Vicente de Paula. Vicente Ferreira de Paula. Vicente Tavares da Silva Coutinho. Seu verdadeiro nome era incerto. Mas não importa. Entre 1832 e 1835, ele foi exatamente o que pensava ser: o General de Todas as Matas. 

Fonte: RHBN

A prole bastarda e imperial

D. Pedro I teve oito filhos legítimos com suas duas esposas. Os de fora dos casamentos são praticamente incontáveis.

Fabiano Vilaça

“Era um rapaz extremamente simpático, de olhos negros e brilhantes, cabelos fartos e encaracolados, belo porte, (...) cuja presença inclinava à confiança e ao abandono”. Com um perfil assim, é difícil imaginar que uma mulher resistisse aos encantos de D. Pedro I. Algumas, de fato, cederam aos atributos do galanteador monarca, que teve que ser hábil para conciliar os negócios públicos com as aventuras amorosas [Ver “Deitou na cama e fez a fama”, p. 32] e seus numerosos frutos.

Da legítima prole imperial fazem parte os filhos que o primeiro imperador do Brasil teve com suas duas esposas: sete com D. Leopoldina, entre eles D. Pedro II (1825-1891), e uma com D. Amélia, a princesa Maria Amélia (1831-1853). Mas os ilegítimos ou bastardos “adulterinos”, ou seja, aqueles que D. Pedro teve fora dos sagrados laços do matrimônio, são ainda mais numerosos. Mesmo após a separação de Portugal, o Brasil continuou seguindo os dispositivos jurídicos das Ordenações Filipinas, de acordo com uma lei de 20 de outubro de 1823. A legislação contida no Livro IV regulava especialmente os direitos e a condição dos bastardos de nobres e plebeus.

A primeira que fisgou o coração do “príncipe afogueado”, como o chamou Otávio Tarquínio de Souza, um de seus principais biógrafos, foi a dançarina francesa Noémi Thierry. Os dois teriam se apaixonado verdadeiramente, mas, devido ao acerto do casamento de D. Pedro (1798-1834) com D. Leopoldina (1797-1826), realizado em 1817, a família real fez de tudo para tirar Noémi de cena. Carlota Joaquina e D. João deram-lhe presentes, arrumaram-lhe um marido, e o próprio D. Pedro entregou-lhe grande soma em dinheiro quando ela foi obrigada a partir, grávida, para o Recife, onde ficou sob a guarda do governador de Pernambuco, Luís do Rego Barreto. Pariu uma menina (há quem diga que teve um menino) natimorta, que o então príncipe teria mandado embalsamar e transladar para o Rio de Janeiro.

Maria Benedita de Castro Canto e Melo (1792-1857), baronesa de Sorocaba, dividiu com a irmã Domitila as afeições do jovem imperador. Casada com Boaventura Delfim Pereira (1788-c.1850), engravidou de D. Pedro meses depois da Independência, tendo seu filho, Rodrigo Delfim Pereira, nascido em 4 de novembro de 1823 – uma semana antes da “Noite da Agonia”, que culminou na dissolução da Assembleia Constituinte. Esse ato contribuiu muito para que se atribuísse ao jovem imperador, então com 25 anos, a imagem de déspota, contrário à soberania popular, imagem reforçada pela outorga da Carta Magna de 1824. 

O pai “não desdenhou o Rodrigo da Sorocaba”, disse Alberto Rangel, um dos autores que melhor documentaram os amores de D. Pedro. Mas existem poucas referências sobre a relação entre o imperador e Rodrigo Delfim, ao contrário daquelas que mostram a grande preocupação de D. Pedro com os filhos concebidos com a marquesa de Santos. Talvez por ser Domitila a sua favorita entre as “favoritas” ou porque o bastardo – reconhecido como filho legítimo pelo marido de Maria Benedita, possivelmente para evitar maior escândalo – já estivesse bem amparado. Afinal, depois de traído, Boaventura Delfim Pereira foi recompensado com cargos importantes, como o de administrador da Real Fazenda de Santa Cruz, além do próprio título de barão de Sorocaba.

Rodrigo Delfim, ao que parece, teve uma formação mais europeia do que brasileira. Educado na Inglaterra (ou na França), casou-se em 14 de janeiro de 1851, no Rio de Janeiro, com Carolina Maria Bregaro (1836-1915), filha do empresário Manuel Maria Bregaro, que chegou a ser um dos donos do Real Teatro de São João, atual Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Mas Rodrigo Delfim voltou a se estabelecer na Europa pouco tempo depois do casamento. Em 1854, veio ao mundo sua primeira filha, Carolina Maria de Castro Pereira, em Berlim; em seguida, nasceu Manuel Rodrigo (1858-1921), em Paris; e depois Maria Germana, em Hamburgo. Pelo casamento dos filhos, percebe-se que a família se estabeleceu definitivamente em Lisboa após peregrinar algum tempo pela Europa.

Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), a mais célebre das amantes do Império brasileiro, teve cinco filhos com Pedro I, que conheceu em São Paulo semanas antes da Independência. Consta que deu à luz um menino morto em 1823, ou seja, na mesma época em que o imperador engravidou a baronesa de Sorocaba. Cerca de quarenta dias antes da proclamação da Confederação do Equador, contrária aos rumos da política imperial – especialmente a outorga da Carta Constitucional de 1824 –, veio ao mundo uma menina, em 23 de maio de 1824. 

Isabel Maria de Alcântara Brasileira (1824-1898) foi reconhecida como filha de D. Pedro, aos dois anos, em suntuosa festa no solar de Domitila, em São Cristóvão. Recebeu o título de duquesa de Goiás em julho de 1826 – a mãe só se tornou marquesa de Santos em outubro. Daí em diante, os aniversários da pequena foram ocasiões de grande celebração. Se Titília foi a amante “favorita” do imperador, Isabel Maria foi a preferida entre os bastardos. D. Pedro exigiu que ela compartilhasse da educação dos seus filhos legítimos. Mas em pouco tempo a duquesa se tornou persona non grata no palácio, principalmente para D. Leopoldina e para a princesa Maria da Glória, futura Maria II de Portugal, que não toleravam “a bastarda”. O enredo prometia mais emoções, pois em 13 de agosto de 1827 nasceu Maria Isabel de Alcântara Brasileira, duquesa do Ceará, outra filha de Domitila, que morreu de meningite em outubro do ano seguinte.

Foram tensos os últimos capítulos do romance de Pedro I com a marquesa de Santos. Em 1825, o Império se envolveu em uma guerra pela manutenção da província Cisplatina. O conflito resultou na perda daquele território pelo Brasil, forçado a reconhecer a independência da República Oriental do Uruguai em agosto de 1828. Um ano depois, no dia 23, nasceu Pedro de Alcântara Brasileiro II – o primeiro era filho de Domitila e viveu alguns meses (1825-1826). O rebento ilegítimo foi fruto de um rápido affair com a modista francesa Clémence Saisset. Como muitos imigrantes de sua nacionalidade que aportaram no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX, ela e o marido se estabeleceram, em 1822, na Rua do Ouvidor, principal endereço da moda no Império. Por volta de 1830, os Saisset retornaram à França com o filho.

Um dia depois do nascimento de Pedro de Alcântara Brasileiro II, em 24 de agosto de 1829, a marquesa de Santos foi definitivamente afastada da Corte, juntamente com sua família, sucumbindo às exigências de um segundo matrimônio para o imperador, viúvo de D. Leopoldina. Partiu grávida para São Paulo, onde deu à luz, em 28 de fevereiro de 1830, outra menina de nome Maria Isabel (1830-1896). Apesar dos rumores de mais filhos ilegítimos, ela pode ter sido a última bastarda de D. Pedro em solo brasileiro.

Acusado de tirano e absolutista, o homem que outorgou a Carta de 1824, reprimiu a Confederação do Equador e perdeu a Cisplatina, entre outros acontecimentos que desgastaram sua imagem pública, abdicou do trono brasileiro em 7 de abril de 1831. Em 1826, com a morte de D. João VI, renunciara à Coroa de Portugal em favor de sua filha Maria da Glória. A menoridade da futura rainha levou seu tio, D. Miguel (1802-1866), à regência. Mas, a partir de um levante apoiado pelos absolutistas, ele usurpou o trono e tornou-se rei de Portugal.     

O fato mobilizou D. Pedro, que decidiu lutar pelos direitos dinásticos de sua filha. Ao deixar o Brasil, começou a preparar, ainda em Paris, a ofensiva para destronar D. Miguel. Durante a guerra, travada entre 1831 e 1834, foi formada na Ilha Terceira a Regência de Angra, símbolo da resistência liberal ao miguelismo. O lugar foi também palco da última – até que algum fato novo prove o contrário – aventura amorosa de D. Pedro. Desta vez, com Ana Augusta Peregrino Faleiro Toste (1809-1896), monja clarissa do Convento da Esperança. O resultado da aventura no claustro foi o nascimento, em 1833, do menino Pedro, que viveu quatro ou cinco anos. O que se sabe sobre ele é pouco e incerto. Diz-se que foi posto na roda dos expostos – onde eram depositadas as crianças enjeitadas – ou entregue aos cuidados de um empregado de Luís da Silva Mousinho de Albuquerque (1792-1846), militar que lutou contra os miguelistas. Ao morrer, o menino teve rico funeral patrocinado pelos liberais.

Em meio à enxurrada de acontecimentos políticos e pessoais protagonizados pelo imperador, o destino da sua predileta, a duquesa de Goiás, foi traçado. As informações são confusas, havendo notícia de que Isabel Maria seguiu em 1829 para Paris, onde foi matriculada no Colégio Sacré Coeur, ou que teria ido para aquela cidade com o pai depois da abdicação (1831). A primeira hipótese parece a mais aceitável, porque em 1837, durante uma viagem à Baviera, D. Amélia (1812-1876), segunda esposa de D. Pedro, decidiu cumprir um desejo expresso pelo marido, já falecido: que ela cuidasse pessoalmente da educação das suas filhas com a marquesa de Santos. A duquesa de Goiás, que estaria estudando em Paris desde 1830, foi chamada pela imperatriz viúva, e antes de ser apresentada à sociedade, foi matriculada no Royal Institute of Munich Girls (Instituto Real de Moças de Munique), que reproduzia padrões de formação bem conhecidos por D. Amélia. 

O plano era casar Isabel Maria na Alemanha. Para tanto, ao retornar a Lisboa, onde residia, a imperatriz deixou a duquesa de Goiás aos cuidados de sua mãe, a princesa Augusta da Baviera. O projeto foi bem-sucedido. A “enteada” se casou com Ernst Fischler von Treuberg (1816-1867), barão de Holzen e conde de Treuberg, passando a residir no Castelo de Murnau. A primeira filha do casal recebeu o nome de Amélia, em homenagem à imperatriz viúva do Brasil, que foi sua madrinha.

D. Amélia não teve o mesmo sucesso com a outra filha de Domitila, a condessa de Iguaçu. Chegou a pedir permissão à marquesa de Santos para que Maria Isabel II viajasse para a Europa a fim de completar sua formação. Antes de falecer, D. Pedro manifestara o desejo de que a filha fosse educada em Londres. Mas Domitila gentilmente recusou a oferta, alegando que Maria Isabel já estava matriculada no Colégio Hitchings, de instrução e educação de meninas, em Botafogo. 

Depois de recusar mais uma vez o pedido de D. Amélia, Domitila consentiu que Maria Isabel II se casasse, em 1848, com Pedro Caldeira Brant (1814-1881), conde de Iguaçu, que era viúvo. Ironicamente, seu pai, o marquês de Barbacena, fora o encarregado da árdua missão de encontrar na Europa uma segunda esposa para Pedro I, e um dos que mais pressionaram para que o imperador afastasse Domitila da Corte.

É comum encontrar menções ao reconhecimento dos bastardos – um termo que caiu em desuso, sobretudo a partir da publicação do novo Código Civil (2002/2003) – por D. Pedro. Ele teria, inclusive, mencionado alguns deles, se não todos, em seu testamento. Mas são inúmeras as imprecisões e os conflitos entre os diferentes autores que falam dos “bastardos imperiais”. Quem sabe se os interessados na história da família no Brasil não encontram aqui um tema a ser investigado? Afinal, onde anda a verdadeira descendência ilegítima de Pedro I? 

Fonte: RHBN

Na mira da lei

No Brasil, a legislação que regulamenta o porte de armas remete ao período colonial

José Eudes Gomes

Em meio a uma nova discussão sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições em nosso país, vale lembrar que a legislação referente ao uso e porte de armas no Brasil remonta aos tempos coloniais.

As ordenações filipinas – código de leis português promulgado em 1603 e válido para todos os domínios ultramarinos lusitanos, dentre os quais o Brasil – continham tópicos especialmente dedicados à regulamentação e controle do porte de armas pela população. Na mira da lei estavam tanto as armas de fogo como as brancas.

O código estabelecia que, apesar de tolerado durante o dia, o uso de espadas, punhais e adagas era proibido à noite. Não era permitido circular com espadas desembainhadas ou maiores de cinco palmos e meio, fosse de dia ou de noite, sendo que arcabuzes com cano menor que quatro palmos de cumprimento também estavam banidos. Ficava vetada ainda a fabricação, venda e conserto de armas com estas especificações. Ao anoitecer, era expressamente proibido o porte de armas de fogo carregadas, especialmente espingardas, arcabuzes, carabinas e pistolas. Já os escravos, por sua vez, não poderiam andar armados sem a presença de seus senhores ou sem a sua autorização. Em caso de infrações, a lei previa prisões, açoites públicos, apreensão das armas e pagamento de fianças. Para incentivar a obediência às leis, determinava-se que aqueles que denunciassem o uso de armas proibidas receberiam parte da multa paga pelo infrator.

Havia ainda privilégios associados às armas. Apesar de não terem autorização para usá-las, clérigos e religiosos poderiam carregar suas armas quando estivessem em viagem ou fora das cidades, vilas e lugares onde morassem. A legislação estabelecia ainda que o direito a cada tipo de armamento dependia diretamente da qualidade social do indivíduo. Enquanto certos artefatos eram privilégios de determinadas categorias sociais, como nobres, fidalgos e oficiais régios, outros grupos sociais, como ciganos, criados e escravos, eram alvo de proibições e restrições. Desse modo, além de serem utilizadas como instrumentos de prestígio e distinção, as armas marcavam e reproduziam as diferenças sociais existentes.

Eram previstas penalidades severas para aqueles que utilizassem armas para a prática de crimes. Os que matassem com espingarda deveriam receber pena de morte e depois teriam as mãos decepadas em pelourinho, à vista de todos. Crimes praticados com armas como espadas e pistolas de comprimento curto, que poderiam ser mais facilmente ocultadas, receberiam punição mais rigorosa. Açoites públicos, amputações, degredos, prisão, confisco de todos os bens e pagamento de penas pecuniárias também estavam previstos para quem praticasse ou mandasse praticar atentados e ferimentos com armas de fogo ou brancas.
   
Assim como o direito de portar armas, a severidade das penas impostas aos que as utilizassem para a prática de crimes também variava de acordo com a qualidade social do agressor e da vítima: enquanto a gente simples receberia punições rigorosas, aos nobres e pessoas de maior estatuto social eram reservadas penalidades mais brandas.

Com o passar do tempo, numerosas portarias, editais e leis complementares - chamadas de leis extravagantes - foram publicadas na América portuguesa com a intenção restringir o porte de armas entre os seus moradores. Nas diferentes capitanias americanas, diversas ordens régias decretaram a proibição expressa do uso de armas de fogo por escravos fugidos ou aquilombados e índios “tapuios”, isto é, insubmissos. Ficava-lhes ainda terminantemente proibida a venda de armamentos ou pólvora. Já a lei de 29 de março de 1719, por exemplo, proibia o uso de pistolas, facas, adagas, punhais, tesouras grandes ou “qualquer outro instrumento que possa fazer ferida penetrante”. Outra lei, datada de 25 de junho de 1749, reforçava tais proibições. Uma determinação régia de 1761 ordenava que “se não consentissem armas de qualidade alguma” em posse dos ciganos, sendo que um edital publicado em 1789 reforçava a ordem de prisão de todos aqueles fizessem uso de armas proibidas.

Não deixa de ser irônico considerar que uma explicação para a publicação de tantas leis era justamente a grande dificuldade em fazer com que as já existentes fossem efetivamente cumpridas. Por conta do número insuficiente de soldados pagos pelo rei, a participação de tropas de homens armados – inclusive índios e escravos – sob o comando de poderosos locais era indispensável para garantir a conquista de novas áreas, o combate a índios, a destruição de quilombos, a repressão de revoltas e a manutenção da ordem estabelecida. Isso tornava as dificuldades de fiscalização e controle por parte das autoridades certamente enormes, o que se somava ainda às grandes dimensões do território e à crônica escassez de funcionários.

Conforme apontaram insistentemente diversas autoridades coloniais, a principal razão para tanta preocupação com a circulação de armas era a avalanche de violência, crimes e desordens que causavam. Os “autos de querela e denúncia” – nome que recebiam os processos criminais da época – estão repletos de acusações de crimes cometidos com armas proibidas e justificam a preocupação das autoridades em relação à grande difusão do uso de armas e ao hábito de andar armado, extremamente vulgarizado na sociedade colonial.

Fonte: RHBN