Versos negros
Por meio de um manifesto intitulado ABC, uma seita cristã ensinava os “morenos” a ler e questionava a dominação dos brancos
Marcus J. M. de Carvalho
Agostinho José Pereira era um negro livre que vivia no Recife sem nunca ter sofrido os maus-tratos do cativeiro. Segundo ele mesmo, nascera livre. Mas perdeu a liberdade em 1846, quando foi preso pela polícia. O motivo alegado para a prisão era o fato de ele ter fundado uma nova seita cristã na cidade, ficando conhecido por seus mais de 300 seguidores como “Divino Mestre”. Mas o que chamou a atenção das autoridades foi o ABC, uns versos encontrados com a esposa de Agostinho. O ABC é o mais antigo manifesto de que se tem notícia que contesta explicitamente a dominação racial branca no Brasil, pregando a revolução. Com um detalhe: seu autor era alguém que se intitulava “moreno”. Agostinho negou a autoria do ABC, mas admitiu o que todos já sabiam: ele ensinava seus seguidores a ler.
O ABC pode muito bem ter sido um recurso didático. No interrogatório do Divino Mestre, a maior preocupação dos desembargadores do Tribunal da Relação era a possível repercussão daqueles versos entre os negros e pardos do Recife. Isso numa época em que estavam ocorrendo algumas das manifestações nativistas que antecederam a Insurreição Praieira, em 1848. Os mata-marinheiros – manifestações nativistas contra os portugueses, os “marinheiros” propriamente ditos – de 1844 a 1848 ajudaram a população livre pobre a enxergar os europeus como inimigos dos brasileiros.
O liberal radical Borges da Fonseca insuflou a massa nessas manifestações nativistas e também atuou como advogado de defesa de Agostinho. Segundo seu pedido de habeas corpus para os dezesseis negros presos pela polícia, não havia motivo para tanto alarde. Eles eram apenas “cismáticos”, dissidentes da Igreja Católica. Nada demais, portanto, em uma cidade onde a igreja anglicana despontava como um dos principais edifícios da nobre Rua da Aurora, apesar da legislação que impunha aos não católicos a obrigação de praticar seus cultos discretamente. Mas para a polícia pernambucana, a seita era apenas um disfarce para se preparar uma insurreição, e as reuniões promovidas por Agostinho estavam ligadas a sociedades secretas em outras províncias com o objetivo de promover uma rebelião de negros e escravos.
Todos os seguidores de Agostinho eram negros. Alguns escravos, mas a maioria, segundo os depoimentos, era de libertos e livres. No ato de sua prisão, outros quinze negros foram detidos com o Divino Mestre. Um deles só foi preso porque pediu, pois queria acompanhar o líder naquele infortúnio. No interrogatório, todos se comportaram com altivez, reconhecendo que o cristianismo deles era diferente daquele da Igreja Católica, pois não acreditavam nos sacramentos nem nos santos, que para eles eram meras estátuas. Entre os detidos havia africanos libertos e também mulheres, que formavam a maioria dos seguidores de Agostinho. Uma das detidas era sua esposa. Uma outra, a “Madalena” da seita. Todos os interrogados sabiam ler. Em uma cidade onde a maioria dos homens livres era certamente analfabeta, isso era surpreendente para os desembargadores que interrogaram os detidos. Os presos diziam que tinham aprendido as escrituras por conta própria ou por inspiração divina, e não apenas por meio da catequese do Divino Mestre.
O ABC simplesmente anunciava que a escravidão da “linda nobre cor morena” chegaria em breve ao fim, depois de mais de 300 anos. Pregava que não só Adão, mas Moisés, Abraão e Cristo eram morenos. Não ignorava a hipocrisia da política imperial, pois “juraste uma constituição (...) que só pede gente livre, e nós na escravidão.” Lembrava do Haiti – onde os escravos se revoltaram em 1791, massacraram a classe senhorial branca e proclamaram a independência em 1804 – e vaticinava que a liberdade viria em breve e que haveria uma inversão total. Literalmente, dizia da classe senhorial: “Fácil é serem sujeitos de quem já foram senhores”. E tudo voltaria a ser como deveria, como fora antes, pois “no princípio do mundo, os reis eram morenos”.
Depois de amargar pelo menos 37 dias na cadeia, o Divino Mestre finalmente foi solto. A partir dali, ele e seus seguidores passaram a ser perseguidos pela população católica, que os apedrejava, certamente com o apoio das autoridades que temiam os “cismáticos”. Não se sabe o que aconteceu com Agostinho depois. É provável que tenha sido recrutado e mandado para bem longe como soldado. No seu interrogatório, deixou clara sua longa vivência na política imperial. Confessou que participara da Confederação do Equador, em 1824, como oficial de milícias, mas não por vontade própria e sim por “obediência” ao então comandante das armas.
Para completar seu currículo revolucionário, admitiu que estivera na Bahia em 1839, e embora tenha dito que não participou da Sabinada, admitiu que conhecera o próprio Sabino, mas porque o líder da Sabinada estava preso na fortaleza onde ele servia então como miliciano. O ABC foi o seu legado para a posteridade, provando que os negros e pardos do Recife tinham uma visão própria do momento que estavam vivendo e não se submetiam facilmente ao cativeiro.
Fonte: RHBN
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