A prole bastarda e imperial
D. Pedro I teve oito filhos legítimos com suas duas esposas. Os de fora dos casamentos são praticamente incontáveis.
Fabiano Vilaça
“Era um rapaz extremamente simpático, de olhos negros e brilhantes, cabelos fartos e encaracolados, belo porte, (...) cuja presença inclinava à confiança e ao abandono”. Com um perfil assim, é difícil imaginar que uma mulher resistisse aos encantos de D. Pedro I. Algumas, de fato, cederam aos atributos do galanteador monarca, que teve que ser hábil para conciliar os negócios públicos com as aventuras amorosas [Ver “Deitou na cama e fez a fama”, p. 32] e seus numerosos frutos.
Da legítima prole imperial fazem parte os filhos que o primeiro imperador do Brasil teve com suas duas esposas: sete com D. Leopoldina, entre eles D. Pedro II (1825-1891), e uma com D. Amélia, a princesa Maria Amélia (1831-1853). Mas os ilegítimos ou bastardos “adulterinos”, ou seja, aqueles que D. Pedro teve fora dos sagrados laços do matrimônio, são ainda mais numerosos. Mesmo após a separação de Portugal, o Brasil continuou seguindo os dispositivos jurídicos das Ordenações Filipinas, de acordo com uma lei de 20 de outubro de 1823. A legislação contida no Livro IV regulava especialmente os direitos e a condição dos bastardos de nobres e plebeus.
A primeira que fisgou o coração do “príncipe afogueado”, como o chamou Otávio Tarquínio de Souza, um de seus principais biógrafos, foi a dançarina francesa Noémi Thierry. Os dois teriam se apaixonado verdadeiramente, mas, devido ao acerto do casamento de D. Pedro (1798-1834) com D. Leopoldina (1797-1826), realizado em 1817, a família real fez de tudo para tirar Noémi de cena. Carlota Joaquina e D. João deram-lhe presentes, arrumaram-lhe um marido, e o próprio D. Pedro entregou-lhe grande soma em dinheiro quando ela foi obrigada a partir, grávida, para o Recife, onde ficou sob a guarda do governador de Pernambuco, Luís do Rego Barreto. Pariu uma menina (há quem diga que teve um menino) natimorta, que o então príncipe teria mandado embalsamar e transladar para o Rio de Janeiro.
Maria Benedita de Castro Canto e Melo (1792-1857), baronesa de Sorocaba, dividiu com a irmã Domitila as afeições do jovem imperador. Casada com Boaventura Delfim Pereira (1788-c.1850), engravidou de D. Pedro meses depois da Independência, tendo seu filho, Rodrigo Delfim Pereira, nascido em 4 de novembro de 1823 – uma semana antes da “Noite da Agonia”, que culminou na dissolução da Assembleia Constituinte. Esse ato contribuiu muito para que se atribuísse ao jovem imperador, então com 25 anos, a imagem de déspota, contrário à soberania popular, imagem reforçada pela outorga da Carta Magna de 1824.
O pai “não desdenhou o Rodrigo da Sorocaba”, disse Alberto Rangel, um dos autores que melhor documentaram os amores de D. Pedro. Mas existem poucas referências sobre a relação entre o imperador e Rodrigo Delfim, ao contrário daquelas que mostram a grande preocupação de D. Pedro com os filhos concebidos com a marquesa de Santos. Talvez por ser Domitila a sua favorita entre as “favoritas” ou porque o bastardo – reconhecido como filho legítimo pelo marido de Maria Benedita, possivelmente para evitar maior escândalo – já estivesse bem amparado. Afinal, depois de traído, Boaventura Delfim Pereira foi recompensado com cargos importantes, como o de administrador da Real Fazenda de Santa Cruz, além do próprio título de barão de Sorocaba.
Rodrigo Delfim, ao que parece, teve uma formação mais europeia do que brasileira. Educado na Inglaterra (ou na França), casou-se em 14 de janeiro de 1851, no Rio de Janeiro, com Carolina Maria Bregaro (1836-1915), filha do empresário Manuel Maria Bregaro, que chegou a ser um dos donos do Real Teatro de São João, atual Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Mas Rodrigo Delfim voltou a se estabelecer na Europa pouco tempo depois do casamento. Em 1854, veio ao mundo sua primeira filha, Carolina Maria de Castro Pereira, em Berlim; em seguida, nasceu Manuel Rodrigo (1858-1921), em Paris; e depois Maria Germana, em Hamburgo. Pelo casamento dos filhos, percebe-se que a família se estabeleceu definitivamente em Lisboa após peregrinar algum tempo pela Europa.
Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), a mais célebre das amantes do Império brasileiro, teve cinco filhos com Pedro I, que conheceu em São Paulo semanas antes da Independência. Consta que deu à luz um menino morto em 1823, ou seja, na mesma época em que o imperador engravidou a baronesa de Sorocaba. Cerca de quarenta dias antes da proclamação da Confederação do Equador, contrária aos rumos da política imperial – especialmente a outorga da Carta Constitucional de 1824 –, veio ao mundo uma menina, em 23 de maio de 1824.
Isabel Maria de Alcântara Brasileira (1824-1898) foi reconhecida como filha de D. Pedro, aos dois anos, em suntuosa festa no solar de Domitila, em São Cristóvão. Recebeu o título de duquesa de Goiás em julho de 1826 – a mãe só se tornou marquesa de Santos em outubro. Daí em diante, os aniversários da pequena foram ocasiões de grande celebração. Se Titília foi a amante “favorita” do imperador, Isabel Maria foi a preferida entre os bastardos. D. Pedro exigiu que ela compartilhasse da educação dos seus filhos legítimos. Mas em pouco tempo a duquesa se tornou persona non grata no palácio, principalmente para D. Leopoldina e para a princesa Maria da Glória, futura Maria II de Portugal, que não toleravam “a bastarda”. O enredo prometia mais emoções, pois em 13 de agosto de 1827 nasceu Maria Isabel de Alcântara Brasileira, duquesa do Ceará, outra filha de Domitila, que morreu de meningite em outubro do ano seguinte.
Foram tensos os últimos capítulos do romance de Pedro I com a marquesa de Santos. Em 1825, o Império se envolveu em uma guerra pela manutenção da província Cisplatina. O conflito resultou na perda daquele território pelo Brasil, forçado a reconhecer a independência da República Oriental do Uruguai em agosto de 1828. Um ano depois, no dia 23, nasceu Pedro de Alcântara Brasileiro II – o primeiro era filho de Domitila e viveu alguns meses (1825-1826). O rebento ilegítimo foi fruto de um rápido affair com a modista francesa Clémence Saisset. Como muitos imigrantes de sua nacionalidade que aportaram no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX, ela e o marido se estabeleceram, em 1822, na Rua do Ouvidor, principal endereço da moda no Império. Por volta de 1830, os Saisset retornaram à França com o filho.
Um dia depois do nascimento de Pedro de Alcântara Brasileiro II, em 24 de agosto de 1829, a marquesa de Santos foi definitivamente afastada da Corte, juntamente com sua família, sucumbindo às exigências de um segundo matrimônio para o imperador, viúvo de D. Leopoldina. Partiu grávida para São Paulo, onde deu à luz, em 28 de fevereiro de 1830, outra menina de nome Maria Isabel (1830-1896). Apesar dos rumores de mais filhos ilegítimos, ela pode ter sido a última bastarda de D. Pedro em solo brasileiro.
Acusado de tirano e absolutista, o homem que outorgou a Carta de 1824, reprimiu a Confederação do Equador e perdeu a Cisplatina, entre outros acontecimentos que desgastaram sua imagem pública, abdicou do trono brasileiro em 7 de abril de 1831. Em 1826, com a morte de D. João VI, renunciara à Coroa de Portugal em favor de sua filha Maria da Glória. A menoridade da futura rainha levou seu tio, D. Miguel (1802-1866), à regência. Mas, a partir de um levante apoiado pelos absolutistas, ele usurpou o trono e tornou-se rei de Portugal.
O fato mobilizou D. Pedro, que decidiu lutar pelos direitos dinásticos de sua filha. Ao deixar o Brasil, começou a preparar, ainda em Paris, a ofensiva para destronar D. Miguel. Durante a guerra, travada entre 1831 e 1834, foi formada na Ilha Terceira a Regência de Angra, símbolo da resistência liberal ao miguelismo. O lugar foi também palco da última – até que algum fato novo prove o contrário – aventura amorosa de D. Pedro. Desta vez, com Ana Augusta Peregrino Faleiro Toste (1809-1896), monja clarissa do Convento da Esperança. O resultado da aventura no claustro foi o nascimento, em 1833, do menino Pedro, que viveu quatro ou cinco anos. O que se sabe sobre ele é pouco e incerto. Diz-se que foi posto na roda dos expostos – onde eram depositadas as crianças enjeitadas – ou entregue aos cuidados de um empregado de Luís da Silva Mousinho de Albuquerque (1792-1846), militar que lutou contra os miguelistas. Ao morrer, o menino teve rico funeral patrocinado pelos liberais.
Em meio à enxurrada de acontecimentos políticos e pessoais protagonizados pelo imperador, o destino da sua predileta, a duquesa de Goiás, foi traçado. As informações são confusas, havendo notícia de que Isabel Maria seguiu em 1829 para Paris, onde foi matriculada no Colégio Sacré Coeur, ou que teria ido para aquela cidade com o pai depois da abdicação (1831). A primeira hipótese parece a mais aceitável, porque em 1837, durante uma viagem à Baviera, D. Amélia (1812-1876), segunda esposa de D. Pedro, decidiu cumprir um desejo expresso pelo marido, já falecido: que ela cuidasse pessoalmente da educação das suas filhas com a marquesa de Santos. A duquesa de Goiás, que estaria estudando em Paris desde 1830, foi chamada pela imperatriz viúva, e antes de ser apresentada à sociedade, foi matriculada no Royal Institute of Munich Girls (Instituto Real de Moças de Munique), que reproduzia padrões de formação bem conhecidos por D. Amélia.
O plano era casar Isabel Maria na Alemanha. Para tanto, ao retornar a Lisboa, onde residia, a imperatriz deixou a duquesa de Goiás aos cuidados de sua mãe, a princesa Augusta da Baviera. O projeto foi bem-sucedido. A “enteada” se casou com Ernst Fischler von Treuberg (1816-1867), barão de Holzen e conde de Treuberg, passando a residir no Castelo de Murnau. A primeira filha do casal recebeu o nome de Amélia, em homenagem à imperatriz viúva do Brasil, que foi sua madrinha.
D. Amélia não teve o mesmo sucesso com a outra filha de Domitila, a condessa de Iguaçu. Chegou a pedir permissão à marquesa de Santos para que Maria Isabel II viajasse para a Europa a fim de completar sua formação. Antes de falecer, D. Pedro manifestara o desejo de que a filha fosse educada em Londres. Mas Domitila gentilmente recusou a oferta, alegando que Maria Isabel já estava matriculada no Colégio Hitchings, de instrução e educação de meninas, em Botafogo.
Depois de recusar mais uma vez o pedido de D. Amélia, Domitila consentiu que Maria Isabel II se casasse, em 1848, com Pedro Caldeira Brant (1814-1881), conde de Iguaçu, que era viúvo. Ironicamente, seu pai, o marquês de Barbacena, fora o encarregado da árdua missão de encontrar na Europa uma segunda esposa para Pedro I, e um dos que mais pressionaram para que o imperador afastasse Domitila da Corte.
É comum encontrar menções ao reconhecimento dos bastardos – um termo que caiu em desuso, sobretudo a partir da publicação do novo Código Civil (2002/2003) – por D. Pedro. Ele teria, inclusive, mencionado alguns deles, se não todos, em seu testamento. Mas são inúmeras as imprecisões e os conflitos entre os diferentes autores que falam dos “bastardos imperiais”. Quem sabe se os interessados na história da família no Brasil não encontram aqui um tema a ser investigado? Afinal, onde anda a verdadeira descendência ilegítima de Pedro I?
Fonte: RHBN
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