sexta-feira, 28 de maio de 2010

Para sobreviver, a escravidão por contrato

Sem ter como prover seu próprio sustento, a cafuza livre Joanna Baptista passa escritura de venda de sua própria liberdade

Manuela Carneiro da Cunha

   Em agosto de 1780, em Belém do Pará, uma mulher livre se vende como escrava. O caso é inusitado e requer um despacho do ouvidor: “caso bastardo”, diz ele, mas que se deve deixar à vontade expressa dos envolvidos, a cafuza que vende sua liberdade e o catalão que a compra. Uma escritura pública de venda é feita em tabelião, diante de testemunhas.
   Joanna Baptista havia nascido livre, filha de uma índia e de um escravo negro, ambos a serviço de um mesmo padre. Mortos os pais e o senhor, ela se declara desvalida – “sem Pay nem May que della podessem tratar e sustentar assim para a passagem da vida como em suas moléstias, e nem tinha meios para poder viver em sua liberdade, e para poder viver em sossego, empregando-se no serviço de Deus e de um senhor que dela tivesse cuidado e em suas moléstias a tratasse" – e desejosa de ser escrava, supondo que quem a tivesse pago por dinheiro teria interesse em mantê-la e cuidar dela.
   A idade da postulante à escravidão não é mencionada na escritura, embora, criada em casa de padre, não devesse ser desconhecida. Devia ser jovem, já que falava dos filhos que acaso viesse a ter, e que a eles a escravidão não seria transmitida – cláusula provavelmente inócua. Quanto a ela própria, seria escrava enquanto vivesse e poderia ser vendida a terceiros.
Joanna Baptista se vende por 80 mil-réis, 40 mil em dinheiro, 40 mil em adereços de ouro e “trastes” para se vestir. Declara ter recebido o dinheiro e as joias, e que iria receber adiante os trastes correspondentes aos 22 mil-réis que faltavam.
   O despacho do ouvidor é de uma singular displicência. Diante de matéria inusitada, ele evoca vagamente o direito romano, pede a presença dos interessados e, ante suas declarações, decide que prevaleça a livre vontade dos contratantes. Dois séculos antes, a questão da legalidade da venda de si próprio em escravidão havia sido discutida de forma exaustiva. Nenhuma menção é feita pelo ouvidor a esse amplo debate, por ignorância, descaso ou expediente.





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