sexta-feira, 4 de junho de 2010

A república dos patriotas

Em 1817, Pernambuco foi palco da primeira experiência republicana da história do país. Apesar de liberais, os revolucionários divergiam quanto à manutenção da escravidão na nova pátria.

Flavio José Gomes Cabral

   Entre os meses de março e maio de 1817, um movimento sedicioso eclodiu no Nordeste, tendo como epicentro Pernambuco e liderado principalmente por setores da burguesia comercial regional e do clero. A primeira insurreição republicana do país não foi obra do caso. Antes do levante chegar às ruas no dia 6 de março, em casas particulares, sociedades secretas e maçonaria realizavam-se reuniões com o objetivo de derrubar o governo. Denúncias sobre essas tramas chegaram até o governador régio Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que resolveu prender várias pessoas acusadas de sublevação. No Forte de Cinco Pontas, um motim militar terminou com a morte do tenente-coronel Alexandre Tomás e antecipou o processo revolucionário.
   Desencadeado o movimento, de imediato as ruas da cidade foram tomadas pelas forças insurgentes. O governador recebeu um ultimatum que exigia sua demissão. Sem oferecer grande resistência Caetano Pinto foi conduzido para Forte do Brum onde cumpriu prisão até sua expulsão para a o Rio de Janeiro. Nessa cidade o ex-governador responderia processo por não ter tido punho forte para debelar o movimento. Logo depois da capitulação do governador os oficiais querendo demonstrar apoio à revolução começaram a arrancar de seus barretes as insígnias reais. Em seguida grande concentração de povo se aglomerou no Campo do Erário, atual Praça da República, para festejar a vitória da revolução.
   Com a deposição de Caetano Pinto, o movimento se consolidaria com a instalação do Governo Provisório, inspirado no Diretório da Revolução Francesa. Este processo foi encabeçado por uma junta composta pelo padre João Ribeiro Pessoa de Melo Negromonte, por Domingos José Martins, representante do comércio; José Luís de Mendonça, responsável pela magistratura; Manuel Correa de Araújo, responsável pela agricultura; e por Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, responsável pelos militares. Instalar o sistema republicano era a meta destes revolucionários.
   Como justificativa do levante, o governo da nova República acusava a Coroa de descumprir um velho pacto com a capitania. Tal “contrato” ancorava-se no mito da restauração do domínio dos portugueses no distante ano de 1654, quando à custa de muito sangue e dinheiro conquistaram Pernambuco dos holandeses. Em contrapartida pela lealdade, a Coroa passou a oferecer isenções fiscais, administrativas e outras regalias que não foram cumpridas. Assim, justifica-se o motivo de a Revolução de 1817 se autoproclamar “segunda restauração de Pernambuco”, já que a primeira seria a que expulsou os holandeses.
   Ao se romper com o velho pacto, as velhas insígnias e as armas reais foram abolidas, desaparecendo o “império do despotismo até seus últimos vestígios”, segundo explicava o decreto de 18 de março de 1817 do governo provisório da República. Emergiam assim novos símbolos como a bandeira e o novo laço nacional azul e branco, os quais procuravam materializar a recente conquista.
   A bandeira da República foi consagrada no dia 2 de abril de 1817 numa cerimônia realizada no Campo do Erário. Tanto o recém-instalado governo quanto a revolta que o viabilizou precisavam inventar um ato inaugural, ou melhor, uma cena pública que os consagrasse e através dos discursos proferidos pontuassem as responsabilidades do patriota. Tantas vezes repetida nos documentos, a palavra patriota indicava uma identidade política nascida em Pernambuco em 1817. O patriota era uma espécie de defensor da república contra os desmandos do despotismo do Antigo Regime.
   É indiscutível que o governo então instalado veio enfrentar entraves por aglutinar pessoas bastante heterogêneas, as quais adotavam pensamentos e comportamentos conflitantes. A divergência era contundente na questão do trabalho escravo e sua participação na luta armada da nova República. O comerciante Domingos José Martins defendia o uso dos escravos na guerra. Já Francisco de Paula, representante dos proprietários rurais, temendo a repetição das cenas do Haiti, era contrário a essa medida.
   A contradição do movimento, que se dizia liberal, viria quando o governo saiu em defesa de uma abolição gradual, lenta e legal, porém, sem falar em datas para eliminar da sociedade o “cancro” da escravidão. Dessa maneira, pode-se entender que o movimento era descolonizador e contra a escravidão, ainda que não vissem como eliminá-la imediatamente.
   Para todas as câmaras das comarcas, foi enviada uma Lei Orgânica que delimitava os poderes do governo provisório vigentes até a elaboração de uma Constituição elaborada por uma Assembléia Constituinte. A Constituição deveria expressar alguns princípios do liberalismo e normas que se opunham às propostas do Antigo Regime: governo republicano, a tese da soberania popular, a liberdade de consciência e de imprensa. Do ponto de vista de soberania popular embasada no povo, dotado de direitos de liberdade e de igualdade, não havia lugar para o monarca.
   Na hipótese de a Constituinte não ser convocada ou, em última instância, não ser concluída dentro de três anos, o governo provisório seria dissolvido, devolvendo ao “povo” o direito de sua soberania. O trânsito suave da velha ordem para a nova foi observado no artigo 21º, que dizia continuarem prevalecendo as leis até então em vigor até quando fosse feito um código nacional.
   Vale lembrar que, do ponto de vista das lideranças de 1817, o conceito de soberania popular se contrapunha à tirania e era a partir dela que se pretendia combater o despotismo. Entretanto, não se pode olvidar que ali a cidadania não alcançava a todos. Tratava-se de uma soberania limitada. A opção por um modelo republicano em detrimento de uma monarquia constitucional parecia melhor se encaixar aos ideais locais, uma vez que esta apresentava pressuposto unitário, enquanto aquela tinha objetivos regionais unindo as províncias do Nordeste sob uma forma federalista.
   A carta escrita pelo padre João Ribeiro à junta paraibana, em fins de março de 1817, insinuava tal intenção ao explicar que a revolução não havia sido feita para o engrandecimento de Pernambuco sujeitando a esta província as da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará “como antigamente”. João Ribeiro arrematava dizendo que as mencionadas províncias ligadas entre si através de interesses e identidade não poderiam se separar. Pelo contrário, deveriam se unir, isto é, formar uma única República, cuja capital poderia ser fundada na Paraíba a uns 30 ou 40 léguas da costa. Ali, deveriam se abrigar tanto a sede do governo como a do Congresso.
   Como outros movimentos da época, a República Pernambucana também foi fortemente influenciada pelos Estados Unidos. A simpatia de João Ribeiro por aquele país era tamanha que ele sugeriu que ser José Pereira Caldas, conselheiro do governo provisório, fosse reconhecido com o título de “o Franklin” do Brasil. Em carta escrita em 17 de março ao governo de Washington para pedir ajuda para o sucesso do movimento, os líderes de 1817 declararam explicitamente que a revolução havia se espelhado no exemplo que aquele país havia dado ao mundo.
   A primeira reação contra a nova ordem instalada em Pernambuco partiu da Bahia. O governador baiano Conde dos Arcos, ao tomar ciência dos eventos pernambucanos, enviou contra o Recife dois navios e soldados armados recrutados na Bahia, Sergipe e Alagoas. De posse de informações e temendo possíveis adesões dos baianos ao governo pernambucano imediatamente procurou o conde neutralizar possíveis focos de resistência em sua província a favor dito movimento. No interior pernambucano focos contra-revolucionários minam a capacidade de resistência dos rebeldes que percebendo o avanço inimigo convocam os escravos sob promessa de liberdade para assentar praça e de futura indenização aos seus proprietários. Do Rio de Janeiro enviou D. João VI reforços sob o comando do almirante Rodrigo José Ferreira Lobo que comandou o poder civil e militar até a chegada do novo governador Luís do Rego Barreto.
   A derrota da República de 1817 deu início a um período de grande repressão. Líder do movimento insurgente, o padre João Ribeiro se suicidou, mas ainda assim teve parte de seu corpo exposto em praça pública. Com o novo governador, também chegaram a Pernambuco alguns homens das tropas do Rio de Janeiro, ditos voluntários leais de El-rei. De Portugal, foi deslocado o batalhão número 2, chamado Batalhão dos Algarves, composto por homens que cruzaram o Atlântico para também dar cobertura ao governador contra os envolvidos no movimento de 1817. Desde a posse do novo mandatário até sua saída, em 26 de outubro de 1821, sua administração caracterizou-se por um clima de revolta, indicando ser praticamente impossível o retorno da primeira república a nascer em solo brasileiro.


Fonte: RHBN



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