Esquecidos e mal pagos |
Professores reclamam de baixos salários e se sentem humilhados pelo governo. Há exatos "140 anos" * |
Daniel Cavalcanti Lemos |
“Não vedes que, tratados os professores como escravos, só conseguireis moldar por eles uma sociedade indigna do século em que viveis?!” Atualizada a linguagem, este questionamento valeria para os dias de hoje. Mas o alerta foi feito em 1871 por professores públicos primários da Corte imperial. Em manifesto aberto para chamar a atenção da sociedade civil, eles exigiam melhores condições de trabalho, respeito por parte do poder público, pagamento dos prêmios a que tinham direito, a desistência do Estado de promover uma reforma do ensino e, principalmente, aumento de salários. Classificados pelo ministro do Império como “incompetentes”, estavam submetidos a salários que, segundo eles próprios, os condenavam à miséria. Além disso, reclamavam que o poder público ignorava solenemente suas reivindicações, como fizera com o primeiro “Manifesto dos Professores Públicos de Instrução Primária da Corte”, elaborado por um grupo de mestres em 1870. Enviado à Assembléia Legislativa, ao ministro do Império Paulino José Soares de Souza e ao imperador D. Pedro II, o documento não recebeu nenhuma resposta satisfatória. Sentindo-se desprezados, os docentes acrescentaram-lhe então um novo trecho e o endereçaram desta vez ao “poder real da nação”, aquele que estaria acima dos políticos e do imperador: a sociedade civil. Publicado em julho 1871, divulgado na forma de um pequeno livro de 21 páginas, o manifesto aos cidadãos começa em tom de verdadeiro desabafo: “Em uma época de patriotismo e de reformas, quando parece despontar nos horizontes da pátria uma nova era de prosperidade; uma classe inteira de funcionários públicos, classe talvez a mais importante dos servidores do estado, vive oprimida, ludibriada e escarnecida, e, o que mais é, humilhada pela injustiça com que os poderes do estado a apelidam constantemente de ignorante”. Ao escrever para a sociedade, os professores reuniram todos os manifestos produzidos anteriormente, como se juntos formassem um histórico de suas reivindicações. A coletânea incluía uma carta enviada a D. Pedro II. Nela, faziam referência à “época de patriotismo e de reformas”, já que, com o fim da Guerra do Paraguai (1864-1870), se anunciavam grandes mudanças. Uma das reformas era a da instrução, anunciada pelo próprio imperador: em suas palavras, os professores deixariam de ser uma “classe deslembrada” (esquecida) entre os funcionários públicos. Em 1870, D. Pedro II, em sua fala do trono, reconheceu a situação difícil em que se encontrava o magistério. Conhecido como amante da cultura, das letras e das ciências, certa vez afirmou que, se não fosse imperador, gostaria de ser mestre-escola. Mas nem esta declarada simpatia nem o reconhecimento público do problema garantiram aos professores primários qualquer acréscimo aos seus ordenados. Com a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871) e a força crescente do movimento abolicionista, parecia claro que o fim da escravidão, cada vez mais próximo, reforçaria a importância da instrução popular. Não à toa, o texto fala em uma época de “justiça, quando os direitos de uma parte da humanidade oprimida vão ser reconhecidos”. O cenário favorável à valorização da escola estimulou a classe a reagir em público contra a forma como estavam sendo tratados pelo Estado. Queixavam-se, por exemplo, do relatório do conselheiro Paulino Soares de Souza sobre os negócios do Império. Apresentado em 1869, o documento dizia que “as condições da instrução primária nessa Corte estão ainda longe de satisfazer as necessidades sociais”. Os motivos apresentados pelo conselheiro eram a carência de escolas e “falta de bons professores”. Ofendidos com a afirmação, os docentes respondem no manifesto dizendo que têm “sofrido resignados toda sorte de injustiças. Agora, porém, a taça transbordou com a repulsa que acabamos de sofrer”. A culpa pela degradação do sistema educacional público, afirmam, é do governo. Indignados por serem tratados como lacaios, rebatem as acusações feitas pelo conselheiro e respaldadas pelos deputados com o intuito de “humilhá-los com o baldeão de ignorante”. Afinal, argumenta o texto, a ignorância no Brasil não é uma característica da sua classe, mas “uma espécie de epidemia, que não respeita muitas vezes as mais elevadas posições”. As duras declarações iniciais abrem espaço para o arremate: “Nenhum de nós ignora o que pertence ao seu ofício, como acontece com muitos de vossos sábios bochechudos que se alimentam de vosso suor!” Na pauta das críticas entra também a construção dos modernos edifícios escolares. Chamados de “palácios”, vinham sendo projetados para servirem ao ensino público primário, substituindo as escolas isoladas que funcionavam em diversas regiões do Rio de Janeiro. A maioria das antigas escolas não contava com espaços agora considerados indispensáveis para o bom ensino, como salas amplas, bem ventiladas e iluminadas, laboratórios, bibliotecas e salas para conferências. Com capacidade para receber aproximadamente 600 alunos, os “palácios” se apresentavam como expressões de um novo tempo e de um novo conceito de escola. As ressalvas não se dirigiam às construções em si, mas ao dinheiro empregado nelas: dentro daqueles “custosíssimos prédios”, o professor, segundo o manifesto, morria de fome. Outra queixa ao novo modelo argumentava que a centralização do ensino nesses grandes edifícios levaria a uma interferência indevida do Estado nas atividades letivas. Pelo mesmo motivo, denunciavam a proposta do governo de criar uma inspeção vigilante, comparando os inspetores a feitores: “Mandai-nos feitores, um para cada escola, se vos aprouver. Falai-nos de emancipação, e quereis o professor escravo! Ah! (...) É que não compreendeis os vossos próprios interesses”. O grupo que elaborou a série de documentos tinha à frente três professores: Candido Matheus de Faria Pardal, João José Moreira e Manoel José Pereira Frazão, que assinam “em nome da classe”. Maior expoente do grupo, Frazão foi o relator do manifesto e tentou organizar uma associação classista, o Instituto Profissional dos Professores, que, por brigas internas, não foi adiante. No ano seguinte, ele fundaria e seria redator do jornal A verdadeira Instrucção Pública, e havia quase uma década vinha escrevendo artigos relativos à situação da educação em vários periódicos, sendo os primeiros publicados sob o pseudônimo de “professor de roça”, no jornal Constitucional, em março e abril de 1863. Esses artigos continham críticas à política e às condições salariais a que estavam submetidos os professores. Num deles, de abril de 1863, o “professor da roça” afirmava que “o professorado hoje é a peior das recommendações! Perguntai a um pai o que é o professor de seu filho, e elle vos responderá: “Um criado de ensinar meninos!” O tom duro do manifesto gerou descontentamento na Inspetoria Geral de Instrução Primária e Secundária da Corte. Quando o documento chegou às mãos do imperador, houve uma grande agitação na cúpula da Inspetoria, com trocas de ofícios e cartas em caráter reservado entre o inspetor geral e o ministro do Império. Em uma dessas correspondências, o inspetor José Bento da Cunha Figueiredo prometeu ao ministro João Alfredo obter informações sobre “os procedimentos a que podem estar sujeitos os professores Frazão, Pardal e Moreira pelo manifesto publicado no Jornal do Commercio no dia 30 do mês de julho”. Porém, apesar de a Inspetoria buscar uma forma de punir os professores, nada poderia ser feito: o próprio imperador defendia o direito de manifestação, ainda que as críticas ferissem a sua administração. Diante disso, o inspetor sugeriu que o Ministério dos Negócios do Império fizesse apenas uma “repreensão” por escrito, o que não afetou os rumos das reivindicações. Mesmo sem alcançar nenhum de seus propósitos, a mobilização dos professores não foi em vão. Eles conseguiram melhorar sua forma de organização, tornando aquele um período de várias realizações. Em poucos anos, foram criadas suas primeiras associações profissionais e fundados jornais, revistas, associações de auxílio, científicas e beneficentes. Nas novas publicações, eram discutidos métodos pedagógicos e as políticas do Império para a instrução. Na década de 1870, dois jornais organizados por professores travaram intensos debates. Um foi A Instrucção Publica, lançado em abril de 1872 e chefiado pelo diretor da escola normal de Niterói, José Carlos de Alambary Luz, e o outro, A Verdadeira Instrucção Publica, lançado dois meses depois. É possível perceber já pelos nomes o clima de disputa presente entre a classe, que em seguida se organizaria em diferentes associações. Algumas tinham caráter científico, como a Sociedade Literária Beneficente Instituto dos Professores Públicos da Corte, de 1874. Outras eram mais assistencialistas, com o objetivo de auxiliar financeiramente os professores em dificuldade, pagar enterros e uma pequena pensão às viúvas. Era o caso da Caixa Beneficente da Corporação Docente do Rio de Janeiro, criada em 1875. Essa participação organizada de professores, produzindo jornais, abaixo-assinados e manifestos, teve importante papel na articulação e na criação das primeiras associações profissionais, como a Associação dos Professores Públicos da Corte (1877) e o Grêmio dos Professores Públicos Primários da Corte (1881). Hoje, quase 150 anos depois, a classe dos professores permanece entre as “deslembradas” do poder. Os problemas da educação pública continuam a ser um dos grandes empecilhos enfrentados pelo Brasil. É preciso continuar lutando pelas mesmas causas às quais se entregaram o professor Frazão e seus colegas. Como dizia o pedagogo Paulo Freire, a luta dos professores em defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um momento importante de sua prática docente: um exercício de ética. Fonte: RHBN [*] - Período de tempo adequado a data atual, janeiro de 2011. |
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domingo, 30 de janeiro de 2011
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