Vegetarianos à força |
Enquanto a nobreza comia todos os tipos de carne, escravos se atiravam na Baía de Guanabara atrás de miúdos de boi. |
Pedro Henrique Campos |
Frutas, verduras e grãos. À primeira vista, uma boa dieta, típica de quem quer manter-se “em forma”, como se diz. O termo que deveria estar entre aspas, contudo, é “quer”, pois ele faz toda a diferença. No Rio de Janeiro de D. João VI, escravos mantinham uma dieta muito próxima à dos vegetarianos – mas eram obrigados a isso, por não terem acesso a quase nenhuma proteína animal. Desde o tempo da colônia, muitos historiadores notaram que os hábitos alimentares simbolizavam com perfeição nossa desigualdade social. As pessoas mais ricas preferiam consumir alimentos estrangeiros, especialmente os portugueses, como vinho, pão de trigo, azeite, vinagre, azeitona e queijo. Já os escravos e homens livres pobres se viam obrigados a comer produtos nacionais, como mandioca, feijão, milho, peixe e frutas. Estava materializada na alimentação a distância que separava os proprietários de terra e grandes comerciantes dos demais grupos sociais. No início do século XIX, o Rio era o principal centro urbano do Brasil. Tinha o comércio mais movimentado e era o principal porto do mercado de escravos. Além da sujeira das ruas, das vias estreitas e barulhentas, era a quantidade de escravos o que mais saltava aos olhos de quem visitava a cidade. A vinda da corte portuguesa, em 1808, aumentou enormemente a demanda por cativos para servir à família real, aos funcionários da Coroa e aos cortesãos. Os escravos chegaram a cerca de 60 mil, quase a metade da população urbana. Com mais homens livres e escravos nas ruas, criaram-se dois grandes problemas para os governantes. Em primeiro lugar, temia-se uma “haitização” da capital, ou seja, uma grande rebelião nos moldes da que dominou a colônia francesa do Haiti em 1791, levando à proclamação da sua independência em 1804. O segundo medo era o do desabastecimento de bens. Principalmente os alimentos. O item mais escasso era também um dos mais elementares: a carne. O produto era transportado para a capital na forma de animais vivos – principalmente boiadas vindas das províncias de Minas Gerais e Rio Grande do Sul (os gaúchos tinham o maior rebanho bovino do país) – ou como carne-seca, em navios que costeavam o litoral, no chamado comércio de cabotagem. Com os bois vivos, preparava-se um tipo especial de carne, diferente da carne-seca, que era mais salgada e durava mais. Os bois eram abatidos em matadouro público (na Rua Santa Luzia, no bairro da Glória) e encaminhados aos diversos açougues da cidade. Ali, as pessoas compravam a carne e preparavam-na no mesmo dia, para que não apodrecesse. Era a chamada “carne verde”: mais cara e consumida pelos grupos privilegiados da sociedade: grandes comerciantes, fazendeiros e altos funcionários do governo. Além de escravos, a vinda de D. João VI ao Brasil atraiu também – principalmente a partir de 1815, com o fim das guerras napoleônicas – muitos cientistas, artistas e comerciantes europeus, que mantiveram cartas e diários de viagem. Estes registros revelam que a questão dos hábitos alimentares no Brasil causava grande estranhamento nos viajantes. Eles criticavam o comportamento dos colonos à mesa, a não utilização de talheres e a falta de respeito a etiquetas, inclusive entre os mais ricos. Relatavam, enojados, que era um costume muito comum comer com as mãos, usando apenas uma faca para auxiliar no corte de algum pedaço de carne. Os estrangeiros também notaram muitas diferenças entre a alimentação das pessoas ricas, dos pobres e dos escravos. Segundo relato do pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), o horário das refeições variava conforme a condição social. Enquanto os empregados e escravos jantavam por volta das 14 horas, os proprietários e grandes comerciantes faziam a refeição apenas às 18 horas. A sesta após a janta era comum, mas também variava entre as classes: enquanto os ricos cochilavam de duas a três horas, os mais pobres – justamente aqueles que trabalhavam – dispunham de menos tempo para o descanso. Alguns viajantes puderam presenciar as refeições de vários grupos sociais, encontrando grande diferença no cardápio. Debret esteve na casa de um rico comerciante e participou de um banquete, que era ali um hábito usual. Ao descrever o evento, o pintor conta que na mesa havia um “enorme pedaço de carne de vaca, salsichas, tomates, toucinho”. Depois vinham “galinha com arroz” e “uma resplendente pirâmide de laranjas” – tudo acompanhado de frutas e taças com água e vinho Porto e Madeira, mantidas sempre cheias pelos escravos domésticos. Os mais abastados comiam não apenas muita carne, mas em grande variedade – boi, porco e ave. Já os homens pobres livres tinham dificuldades para consumir proteínas animais. Debret nota que um pequeno comerciante carioca comia apenas “um miserável pedaço de carne-seca” com farinha e feijões. Robert Walsh, viajante inglês, relata que “o alimento do pobre é o feijão-preto e a farinha de mandioca. O primeiro é sempre preparado com toucinho e a mandioca é servida também com carne-seca”. A situação dos escravos era ainda pior, tendo que lutar para conseguir comer qualquer espécie de carne. Segundo Debret, viviam “disputando aos animais domésticos os restos de comida”. Em regiões rurais, médicos encontraram escravos que não comiam alimento animal havia anos. Eram verdadeiros vegetarianos à força. Em busca de carne, alguns escravos ficavam próximos ao matadouro, aguardando o momento em que as sobras eram jogadas ao mar. Eles então mergulhavam nas águas da Baía de Guanabara e coletavam os miúdos de boi, para fazer lingüiças e comer junto com feijões. Quando os senhores concediam carne a seus escravos, esta vinha em tão pouca quantidade que muitas vezes era necessário transformá-la em sopa, para que todos pudessem comer. Os cativos também buscavam outros tipos de animais para completar sua dieta, atesta o inglês John Luccock: “tudo quanto tem vida, exceto, talvez, alguns répteis, [...] e todas as criaturas pareciam igualmente bem-vindas pelas classes baixas dos nativos e pretos”. Alguns escravos lançavam mão do roubo para conseguir pedaços de bife. Quando os quartos de bois eram transportados do matadouro para os açougues em carrinhos de mão, assaltavam o transportador para conseguir sua pequena porção diária de alimentação animal. Quem mais recorria aos assaltos eram os chamados escravos de ganho, que podiam se dedicar a diferentes ofícios urbanos por conta própria, devendo pagar boa parte de seu rendimento aos senhores. Não à toa, em 1808, D. João criou a Intendência de Polícia da Corte, que, entre outras funções, tinha que manter a “ordem” na cidade, evitando furtos e toda forma de organização e preparação de uma rebelião escrava na nova capital do Império. No livro Geografia da fome, escrito logo após a Segunda Guerra Mundial, o médico e intelectual Josué de Castro (1908-1973) afirmou que era possível dividir a humanidade entre os que não comem e os que não dormem com medo dos que não comem. Assim vivia a população do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX: em parte faminta, em parte amedrontada. Fonte: RHBN |
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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
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