domingo, 30 de janeiro de 2011

Flavio José Gomes Cabral
Palmares entre sangue e fogo
Flavio José Gomes Cabral
Pouco se sabe sobre o cotidiano e os primeiros anos no quilombo de Palmares. As fontes relativas a esse quilombo começam a surgir com mais intensidade a partir de 1670, quando da mobilização de tropas organizadas pelas autoridades coloniais para destrui-lo. Entretanto, há notícias de expedições a partir de 1602 comandadas pelo oficial português Bartolomeu Bezerra que resultaram na destruição de mocambos e na apreensão de alguns fugitivos.
Na realidade, os manuscritos são de natureza pública, tratando-se de pareceres, alvarás e relatos de comandantes sobre estratégias de guerra, e pouco revelam detalhes do cotidiano palmarino. Nos documentos, essas pessoas são chamadas de “negros alevantados”, que começaram a crescer depois de 1630 durante a ocupação do Nordeste pelos holandeses. Aproveitando a desordem provocada pela invasão flamenga, os negros fugiam das senzalas, indo se refugiar nos mocambos da região da Serra da Barriga, no atual território de Alagoas. A área era povoada por palmeiras, advindo daí a denominação do quilombo, que ao longo dos tempos cresceu, estendendo-se pelas ribeiras do Rio São Francisco, adentrando o Agreste Meridional e a Mata Sul pernambucana além dos limites do Cabo de Santo Agostinho.
Nesse período, conforme escreveu José Antônio Gonsalves de Mello, bandos de negros promoviam ataques nos caminhos; eram os chamados “boschnegers”, ou negros da mata. Contra eles se bateram capitães-do-mato brasileiros, já que os holandeses eram tidos como inábeis para tal função. O negro da mata parecia não ser um negro qualquer porque, no tempo do Conde de Nassau (1637-1644), quem conseguia capturá-lo recebia um prêmio maior que o pago por um escravo comum.
Há divergências quanto ao número da população de Palmares nessa época. Estima-se que existiam entre 6 mil e 20 mil habitantes. A falta de mulheres foi um grande problema. Por isso se raptavam escravas e índias, sendo essa uma das causas dos constantes conflitos entre os palmarinos e os grupos indígenas das redondezas. Barleus, autor de uma História dos feitos recentes praticados durante oito anos no Brasil, falava da existência de dois quilombos na Serra da Barriga: Palmares Grandes e Palmares Pequenos. Este deveria contar com uma população em torno de 6.000 pessoas e aquele, de 5.000, segundo revelou o trabalho de espionagem realizado em 1637 pelo mulato ou mestiço Bartolomeu Dias, que tinha vivido entre os palmarinos.
No diário do capitão Blaer escrito em 1645, há informes da existência de dois mocambos em Palmares. Um dos quais, designado por ele de “Velho Palmares”, teria sido abandonado pelos moradores porque estava situado em um terreno insalubre, dando margem para a fundação do Palmares Grandes. Esse povoado deveria contar com umas 200 casas e foi atacado pelas tropas do citado capitão, que contava com um efetivo de centenas de homens e com o apoio dos índios tapuias. Durante o ataque, cem palmaristas tombaram no campo de batalha e outros tantos foram capturados. Uma parte daquele povo conseguiu se embrenhar nas matas e como resposta passou a atacar as propriedades da vizinhança. 
Na realidade, o estudo sobre o Quilombo de Palmares é um campo em aberto, merecendo investigações. Dentro desse universo, podemos nos perguntar se todos os escravos que fugiam dos engenhos na época da guerra dos holandeses realmente se refugiavam em Palmares ou viviam em pequenas comunidades escondidas em seu entorno ou distante dele. A resposta a essa dúvida carece de base em novos estudos, principalmente na documentação produzida pelos holandeses. Dentro desse universo, diversos quilombos existiam, sendo o mais importante o mocambo chamado Macaco, espécie de capital de Palmares Grandes, populosa e fortificada. 
Muitos estudiosos disseram que os quilombos foram a única via de resistência à escravidão. Entretanto, os quilombos não foram a única forma de protesto, como sugere o historiador Flávio Gomes. Segundo esse autor, olhar a história dos quilombos apenas por esse ângulo é não perceber o legado e a história deles, bem como a possibilidade de entender o “funcionamento das sociedades nas quais se estabeleceram”, as formas de domínio, transações, negociações, astúcias políticas, violências e experiências de vida. Palmares, a exemplo de outras comunidades quilombolas surgidas no país, não vivia isolado. Sua capacidade de interação com outros segmentos sociais impressionou as autoridades e os proprietários de terra. Os mocambos desenvolveram atividades econômicas que interagiam com as economias locais. Pouco se sabe sobre as lideranças da localidade. Os relatos sobre aquelas figuras são os produzidos pelos comandantes das expedições que estiveram na área do quilombo com a finalidade de destruí-lo. 
Os quilombolas conseguiram vencer as matas e paulatinamente foram tomando conhecimento da topografia da região. A princípio viviam da caça, da coleta e da pesca, mas, com o crescimento da população, passaram a praticar a agricultura (milho, feijão e cana-de-açúcar), comercializando esses produtos e trocando-os por armas e munições.
A comunidade palmarina era hierarquizada, havendo indícios de se tratar de uma “monarquia eletiva”, cujo rei ou “chefe de macacos” comandava os chefes dos outros mocambos. Em uma carta escrita pelo governador D. Pedro de Almeida em 4 de fevereiro de 1678 ao regente D. Pedro, consta que, por ocasião dos ataques contra Palmares que resultaram na morte de Ganga-Zumba, suas mulheres, filhos e cativos, abriu-se a possibilidade de se pensar na inexistência de um “igualitarismo” em Palmares, dada a vigência da escravidão nos quilombos.  
Com a capitulação dos holandeses em 1654, os negros palmarinos continuaram a desafiar o poder colonial. Nos anos de 1670, duas expedições contra Palmares não cantaram vitória: a de 1675, chefiada pelo capitão Manoel Lopes Galvão, e a de 1677, comandada pelo capitão Fernão Carrilho, que pensou ter derrotado os negros, quando na verdade apenas pôs as mãos em alguns palmarinos, entre eles os parentes do chefe Ganga-Zumba. Com essa façanha, o governador pernambucano Aires de Sousa conseguiu pressionar o dito chefe, firmando em 1678 o “acordo do Recife”, que concedia alforria aos nascidos em Palmares e a desocupação da área num prazo de três meses para viverem nas terras concedidas pela coroa em Cucaú, na ribeira dos rios Sirinhaém e Formoso. Nessas terras, ficava assegurado aos ocupantes o direito de participar do comércio com os vizinhos e dos foros de vassalos do rei de Portugal. Algumas lideranças de Palmares não aceitaram esse acordo, gerando cisões e inaugurando uma nova fase na história daquelas comunidades com o surgimento de uma nova liderança – Zumbi.  
No tempo de D. Pedro de Almeida (1674-1678), governador de Pernambuco, foi posto em atividade todo o empenho para destruir Palmares. Em 1674, organizaram-se algumas forças contra os mocambos. Para isso, munições bélicas e víveres foram estocados em Sirinhaém, Porto Calvo, Una e São Francisco, pontos eqüidistantes do Centro de Palmares. As lutas foram acirradas, havendo baixas em ambos os lados. Em um desses combates, o líder Zumbi foi ferido, mas conseguiu fugir. O cansaço e o estrago causados às tropas fizeram-nas recuar, trazendo consigo alguns prisioneiros. 
Nos fins de 1694, entendia-se que a aniquilação de Palmares era um assunto que merecia atenção. Nesse ano, atacaram os mocambos de Una, Catingas, Pedro Capacaça e Quiloange, ocasião em que cerca de duzentos negros foram presos. As tropas chegaram a localizar o esconderijo de Zumbi, mas ele conseguiu fugir a tempo, reorganizando nas matas a resistência. O aniquilamento de Palmares figurava entre os diversos planos do governo de Caetano de Melo de Castro (1696-1699), que contratou os serviços do experiente bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, que residia no Piauí, para aniquilar os mocambos da Serra da Barriga. As tropas militares partiram de vários pontos e conseguiram, depois de obter informações, localizar a Serra de Dois Irmãos, onde se encontrava Zumbi. 
Apesar de protegido, Zumbi foi morto em combate no dia 20 de novembro de 1695. Sua cabeça foi cortada e enviada ao Recife. A carta do governador Melo de Castro ao monarca datada de 24 de junho de 1696 dava ciência dessa façanha, relatando a guerra e a morte de Zumbi, cuja cabeça foi exposta como troféu de guerra em um mastro “no lugar mais público” do Recife, na tentativa de satisfazer os patrocinadores da guerra, como também para “atemorizar os negros que supersticiosamente” se recusavam a acreditar na morte do líder negro. Julgavam-no “imortal”. Zumbi morto? Impossível. Muitos criam que um deus da guerra não pode morrer. Após a destruição de Palmares, os soldados foram recebidos com honras pelo governador e as terras do quilombo foram posteriormente aquinhoadas em lotes no regime de sesmaria e distribuídas entre os que participaram do cerco ao dito quilombo.   
A tomada de Palmares e o assassinato de seu principal líder, Zumbi, não puseram fim às atividades quilombolas na região. Uma parte da população migrou para as capitanias vizinhas e a outra passou a viver no entorno do antigo quilombo. Cartas do governador pernambucano Fernão Martins Mascarenhas de Lancastre (1699-1703) ao rei português D. Pedro II relatam a existência de um reduto negro na antiga região de Palmares comandado por Camoanga, que se recusava a cumprir uma promessa feita ao bispo Francisco de Lima (1695-1704) de se “reduzir”. Diante dessa rebeldia, o rei ordenava, em 12 de janeiro de 1700, que se fizesse guerra contra ele, a fim de “acabar com as relíquias” daqueles “negros, que ainda depois da” vitória sobre Palmares “permaneciam em vários lugares”.
Camoanga foi morto em 1703 durante um ataque. Pelo menos até meados do século XVIII forças paulistas estiveram acampadas na região na tentativa de impedir o nascimento de novos mocambos, como também para proteger a ocupação daquelas terras, que haviam sido doadas no regime de sesmaria, cujos proprietários procuravam manter sua empresa sem a preocupação de que elas poderiam vir a ser atacadas por negros quilombolas.

Fonte: RHBN

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