quarta-feira, 28 de abril de 2010

A educação Jesuítica no Brasil colonial - parte final

Ao chegarem as terras Luzas na América, os Jesuítas não só trataram de educar os Gentios bárbaros em sua educação religiosa, também, voltavam suas doutrinas educacionais religiosas para os meninos do Brasil Quinhentista, principalmente meninos filhos de portugueses instalados e nascidos aqui no Brasil.

Por Samuel Lima

   A aplicação das doutrinas educacionais aos curumins, não só ficavam restritas ao catecismo dialogado e nem ao método de ler e escrever. Ensinava-se também, alguns ofícios e profissões necessárias ao contexto sócio – econômico do Novo Mundo, sendo estas: A Prática Agrícola, a Marcenaria e a Ferraria, de modo que os meninos índios ao entrarem em um terreno diferente do seu, estariam preparados à adaptar-se a este sem muitas dificuldades, e também servir com estas funções as necessidades da Igreja e de suas obras. Também utilizavam-se do teatro para educar os meninos índios e ensinar-lhes noções de pecado e moral de forma à repugnar-lhes os hábitos.
   Apesar de toda à dedicação ao processo de educação dos meninos, os Padres sempre reclamavam que mesmo os Curumins aprendendo os bons costumes e as práticas da Fé, estes desviavam-se facilmente delas ao alcançarem a adolescência e, passavam a praticar os mesmo costumes repugnáveis e bárbaros de seus pais. E que para tal solução deste mal, deveriam aplicar punições aqueles que desviavam-se da doutrina educacional. Entretanto, este fato acontecia quase que com freqüência. Quando ocorria certas atitudes consideradas erradas aplicavam o castigo do tronco, sendo este praticado com aplicação de algumas chibatadas para corrigir o tal erro dos infratores.
   Toda esta pratica punitiva aplicada aos erros dos alunos, era de costume adotada nas escolas e seminários, e não nos núcleos educacionais dos aldeamentos, tendo em vista a qualquer reação  negativa dos pais dos meninos a tal ato, já que eram este o sustentáculo de proteção da Companhia nos Interiores do novo mundo em relação ao ataque de tribos não aliadas dos portugueses.
   Por fim, este modelo de educação visava não só ao ensinos e bons costumes dos meninos do Brasil Quinhentista, mas também, salvaguardar as bases doutrinarias da Companhia de Cristo no Brasil, e o suporte para tal empreitada era os meninos do Brasil Quinhentista que uma vez escolhidos e levados para o seio da Instituição unia-se à um só corpo, o corpo da Fé do colonizador que deturpava as bases sócias e culturais das tribos em detrimento de seus desejos de perpetuação no novo mundo.



























segunda-feira, 26 de abril de 2010

Carlota Joaquina: a face da ambição desmedida

Em sua busca desmedida pelo poder, levou Carlota Joaquina a participar de várias conspirações e tentativas de golpes, inclusive até contra o seu próprio marido, D. João VI

Por Samuel Lima

   Em suas intenções golpistas, Carlota Joaquina tramou - muitas destas tramas sem sucesso - mais de cinco conspirações como meio de barganhar o poder político que tanto desejara assumir.
   A primeira tentativa de golpe contra o próprio marido com a intenção de assumir o trono Português, ocorreu em meados de 1805. Neste ano, D. João VI passou por uma profunda crise de depressão - sendo esta sua primeira crise- se afastou da vida política e blica, ficando recluso no palácio de Mafra na companhia dos frades e isolando-se ainda mais, trocando Mafra pelo solar de Vila Viçosa. Pensando que o marido ficara louco como a mãe (a Rainha Dona Maria I ), a princesa Carlota Joaquina buscou afastá-lo do poder para assumir ela mesma a regência do trono Português. Com isso, criou um  grupo de partidários a sua volta para apoia-la no golpe alegando insanidade de D. João VI,  e assim iriam isola-lo, para com isso assumir o poder.   Alertado a tempo pelo seu médico, Domingos Vandelli, D. João retornou a Lisboa em tempo hábil de desbaratar o golpe da esposa e manter a coroa sob sua cabeça. O caso foi levado a um inquérito, onde foi cogitada a hipótese de Carlota ser presa com seus aliados. O resultado só não foi pior para a princesa porque D. João VI quis abafar o caso entre as paredes do palácio.   A partir deste acontecimento, D. João e Carlota Joaquina passaram a viver separados. 
   Já no Brasil, Carlota Joaquina ao tomar conhecimento de que Napoleão teria deposto seu irmão do trono da Espanha, Fernando VII em 1808, contando com o apoio do Almirante Inglês Sidney Smith, enviou cartas para as elites das colônias espanholas na América do Sul com a intenção de ser tornar Rainha do Império e de garantir forças contra Napoleão Bonaparte, ainda mais porque o seu pai havia abdicado do império e ela era a pessoa direta na linha de sucessão. Temendo perde a colônia, que sem um rei poderia começar o seu processo de independência, exigiu a D. João VI que a libera-se para assumir o trono no lugar do irmão, preso por Napoleão. Porém, D. João VI aborta os planos de Carlota atrasando sua ida a Buenos Aires, como relata em trecho de uma de suas cartas para Carlota Joaquina:
“Quando Vossa Alteza for solicitada de maneira formal e autêntica, poderá empreender sua viagem”.
Com essa ação de atrasar a ida de Carlota para assumir o trono no lugar do irmão,  D. João VI minou as intenções de Carlota de dar um golpe no irmão, pois as colônias espanholas começariam o seu processo de independência nas Américas, arquivando o então projeto de Carlota Joaquina.   
   Em 1821, já de volta a Portugal, buscou apoio na frades e nobres em mais um audacioso projeto. No seu novo plano estava a intenção de não aceitar a imposição da constituição liberal que limitava o poder do rei e e obriga-lo abdicar do trono e destruir a constituição. Sua atitude ficou marcada em não assinar a carta constituinte, por isso, foi presa no Palácio do Ramalhão. A intenção de tal golpe era afastar D. João VI e colocar no trono de Portugal o seu filho, o Infante D. Miguel. Porem, mais uma vez, seu golpe é frustado.
   Em seu retiro no Palácio de Ramalhão, tramou mais golpes contra o marido e com a intenção de derrubar a constituição e retirar o rei do seu posto, e colocar o seu filho D. Miguel. Este golpe foi chamado de Vilafrancada. Aproveitando-se, Carlota Joaquina e D. Miguel, de que as tropas francesas mandadas pela Santa Aliança estavam na Espanha com a intenção de derrotar o regime constitucional e instalar o absolutismo do rei  espanhol Fernado VII, apoiam o movimento absolutista no norte português sob o comando do Conde de Amarante,  acreditando que as tropas francesas apoiariam o golpe. D. Miguel que possuía o titulo de generalíssimo do exército português, juntou um grupo do exército na cidade de Vila Franca e rumou em direção ao norte para apoiar as tropas do Conde de Amarante, em 27 de maio de 1823. No final do mês, D. João VI apoiado pelo 18º Regimento de Infantaria, leal a seu governo, rumou ao norte e desbaratou as tropas rebeldes absolutista sob o comando de D. Miguel, eliminando mais uma tentativa de golpe ao seu reinado. Após a Vilafrancada, o rei acabou por suspender a constituição, prometendo para logo breve a convocação de novas eleições, com a intenção de se redigir um novo texto constitucional. Foi então buscar a esposa no retiro e durante alguns meses, reinou a harmonia entre os dois.
   Um ano após a tentativa do golpe de Vila Franca, Carlota Joaquina e D. Miguel tramam um novo golpe para retirar do poder o rei  D. João VI. D. Miguel  mais uma vez, tentou tomar o poder no golpe de 30 de abril de 1824, conhecido como golpe da Abrilada. No entanto, tal feito não logrou êxito devido o apoio dos embaixadores da França e da Inglaterra e da hábil ação de D. João ao se retirar para um navio de guerra no Rio Tejo, de onde conseguiu o fracasso do golpe, ordenando a retirada do cargo de generalíssimo do exército de D. Miguel e o exilou na Áustria, o mesmo fez com Carlota Joaquina que foi esta desterrada para o Palácio de Queluz. Mais uma vez as tramas políticas de Carlota Joaquina falhavam. 
   Depois de tantas tentativas de golpes que tinha sofrido, D. João VI no final da vida nomeou um conselho de regência para lhe suceder o trono em caso de sua morte, retirando assim as possibilidades de Carlota Joaquina e D. Miguel lhe suceder, nomeou como substituto para seu lugar no trono, a sua filha, a Infanta Isabel Maria de Bragança, que assume o reino após 10 de março de 1826, data do falecimento de D. João VI. Mas esta ação de D. João VI não eliminou as intenções golpistas de Carlota Joaquina e sua havida busca pela manutenção do poder absoluto. 
   Ainda no mesmo ano de sua posse, Dona Maria Isabel abdicou do trono português em favor de sua sobrinha,  Maria da Glória -  filha de D. Pedro I  - que iria se casar com D. Miguel, seu tio,  e que no processo do acordo matrimonial, aceitaria a Constituição promulgada por Pedro I do Brasil. Porém, não foi o que aconteceu, D. Miguel  não concordava com a carta constitucional e tinha apoio da mãe, Carlota Joaquina. Mesmo sabendo dos rumores intencionais de D. Miguel, D. Pedro I autoriza sua tomada de posse em 1828. Breve tempo depois, D. Miguel aclama-se rei de Portugal no lugar de sua esposa, Maria Isabel,   o que leva a um confronto entre as tropas de D. Miguel e D. Pedro I em meados da década de 1830, saindo-se D. Pedro I como vencedor e pondo fim a mais uma tentativa frustrada de golpe da dupla Carlota Joaquina e D. Miguel para tomar o  trono do reino de Portugal.           

   

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A Revolta dos marinheiros contra os castigos da chibata - 1910 [parte I]

Em pleno inicio do mandato político do Presidente Hermes da Fonseca, eclode no Rio de Janeiro uma revolta armada colocada em prática por marinheiros sublevados contra os castigos físicos e as humilhações impostas pela doutrina militar naval

por Samuel Lima

Antecendentes

   Os castigos corporais utilizados como meio disciplinar pela marinha, não era nenhuma novidade no cenário da "pedagogia do medo" imposta pela doutrina militar naval no século XIX e meados do século XX no Brasil. O corpo naval de varios países do mundo, utilizavam o castigo como meio de punir o mal comportamento dos seus marujos.
   A marinha brasileira,  não fugia a regra e utilizava os castigos como forma educativa para o mal comportamento - herdara tal atitude da marinha portuguesa. Porém, a partir da influencia sofrida pelos marujos desde a Guerra do Paraguai até a Abolição da Escravatura, estes castigos começaram a ser contestados. 
   Um fato interessante ocorre no final do governo de D. Pedro II quando um confronto nas ruas do Rio de Janeiro entre os marinheiros e a polícia, devido à querelas antigas, chama atenção dos republicanos que utilizam de tal fato para atacar e ganhar apoio dos marujos para a causa republicana, pois, quanto mais fossem avessos a Monarquia, melhor seria para os republicanos. Um dos republicanos, que estava neste dia no cenário do conflito, foi o Ministro da Marinha no governo de Deodoro da Fonseca, o Marechal  Eduardo Wandenkolk. O Marechal, ao assumir o comando do Ministério da Marinha, dois dias após a sua posse, decreta a proibição dos castigos físicos imposto aos marujos, mas, após cinco meses da proibição sofrendo pressão do oficialato maior, cede aos pedidos de retorno dos castigos e aplica uma regra mais rígida e cruel, resgatando inclusive o castigo da chibata, onde em média o número aplicado de chibatadas podia chegar até duzentos e cinqüenta. 
Com essa atitude, levantes de marujos começam a acontecer em vários estados brasileiros ainda na década de 1890, mas a organização destes não leva o movimento adiante. 
    Já no início do século XX, a situação dos marujos piora ainda mais quando os soldos pagos pelo estado aos oficiais passa por um aumento, já a marujada, fica sem nada de reajuste que somados aos castigos físicos, a má alimentação e ao alistamento forçado perpetua sua situação difícil. Com a chegada de novos e modernos navios de guerra da marinha brasileira - processo de modernização inicial em 1904 - comprados de estaleiros ingleses Vickers-Armstrong, ocasiona a necessidade direta do aumento de homens, algo não colocado em prática, mas só sobrecarrega os que já estavam em suas funções, o que proporciona as frequentes irritações e insubordinações e o  consequente aumento do castigo punitivo das chibatadas.
   Em 1909, devido a dificuldade do manuseio das armas e da formação de um grupo preparado para trabalhar com as modernas armas, envia, para a Inglaterra, um grupo de marinheiros para aprenderem o processo de utilização e manuseio da frota, como estes se familiarizaram com a situação  política da moderna marinha inglesa, voltaram mais experientes no quesito e passaram a discutir com maior veemência a sua situação perante a instituição ao qual eram subordinados. Entre estes marinheiros, estava João Candido, O Almirante Negro, o lider da Revolta da Chibata em 1910.              

A educação jesuítica no Brasil colonial - parte I

Ao chegarem as terras Luzas na América, os Jesuítas não só trataram de educar os Gentios bárbaros em sua educação religiosa, também, voltavam suas doutrinas educacionais religiosas para os meninos do Brasil Quinhentista, principalmente meninos filhos de portugueses instalados e nascidos aqui no Brasil.

 Por Samuel Lima

   Em sua concepção fundadora, os Jesuítas depois que consolidam suas bases missionárias fincadas em seu embrião, transformam-se em ordem docente para formação educacional, onde depois, passam a não só servir aos seus membros, mas também a juventude, com intuito de forma-los nas letras e virtudes para que estes propagassem os valores da companhia através da educação e do enquadramento moral. É neste mesmo momento que a noção de criança nasce na abordagem idearia da Europa, devido a relação e transformações entre grupos e indivíduos trazendo novas formas de afetividade e sentimento perante os “meudos” e afirmando a infância. É nesta abordagem que os Jesuítas tratando o estado de infância como puro e passível de um enquadramento moral educacional em seus moldes, que no Brasil levam-se a escolher “o papel em branco” a ser escrito, e inscrever neste com lápis de suas concepções educacionais e moral-religiosas.

   No raiar das missões evangelizadoras educacionais no Brasil do século XVI, os Jesuítas tiveram grandes dificuldades na educação catequesicas dos gentis bárbaros, porém, viram nos curumins destes uma opção de introduzir a educação religiosa como forma de educar os mais velhos em seus costumes abomináveis, e de estarem afastados da fé cristã, já que os adultos relutavam à educação, as crianças seriam frutíferas nestes métodos.
   Porém, os próprios "principais" de tribos aldeiadas em contato com os Jesuítas, davam seus filhos para a educação nas escolas destes primeiros, como uma  forma de fixar aliança entre tribos e a igreja, no corpo da Companhia de Cristo. Quando ensinavam os meninos índios, estes tratavam de lançar suas bases catequesícas na educação dos mais velhos, abominando a crença de seu povo em detrimento dos bons costumes cristãos, o que enchia de orgulho os padres Jesuítas. Não só educar os bons costumes cristãos era a prática jesuítica, mas também, preserva-la nas crianças, pois acreditavam que as crianças constituíam uma “nova cristandade” que através da firmeza, virtude e nos costumes, estes meninos continuariam firmes na educação.
   A ordem que era dada aos educandos gentis dos Jesuítas, variava de acordo com o local. Em algumas escolas – principalmente as criadas pelo governo de Mém de Sá – os meninos pescavam para o sustento de sua família pela manhã, à tarde tinham que está na escola no período de aula que duravam de três a quatro horas, no final do expediente escolar as praticas doutrinarias eram aplicadas a estes meninos.
   Na educação dos aldeamentos, os meninos viviam com os pais e não com os padres, na aldeia a escola era pontos específicos de ensino e não internatos religiosos. O modelo educacional era aplicado na memorização através do catecismo dialogado - perguntas feitas por diálogos. Em 1559, em cartas que foram emitidos ao Geral da Companhia - situado então no exterior- trata da importância de diálogos traduzidos para a língua dos meninos índios. Fato, que fez Anchieta traduzi-los para o Tupi. Estes diálogos tinham abordagem sobre variados temas; a criação do mundo, paixão de cristo entre outros.
   Além do Catecismo dialogado, a música foi também utilizada como método educativo dos meninos índios para a aprendizagem da doutrina e dos bons costumes. Onde era ensinado os cânticos de oração cristã com o uso de instrumentos indígenas e da própria língua dos índios do Brasil. Quando o primeiro bispo do Brasil atracou em terras daqui, tratou  logo de abolir tais modelos de catequese, alegando que era incorreto utilizar-se de cânticos nas línguas e instrumentos dos meninos índios.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

VESTÍGIOS DO PASSADO: relatos e depoimentos de participantes da Guerra de Canudos

No vigor das batalhas ou nos anos posteriores a esta, muitos foram os relatos e depoimentos de atores, espectadores  e sobreviventes da Guerra de Canudos, que elucidam e ampliam os horinzontes do saber deste grande conflito no sertão da Bahia no final do século XIX

Samuel Lima

Testemunhas oculares:

Trecho do relatório do Tenente Pires Ferreira, Comandante da 1ª expedição contra Canudos, 21/11/1896 - Combate de Uauá.

A’s cinco horas da manhã do dia vinte e um, fomos surprehendidos por um tiroteio partido da guarda avançada, colocada na estrada que vae ter a Canudos. Esta guarda, tendo sido atacada por uma multidão enorme de bandidos fanaticos, reistiu-lhes denodamente, fazendo fogo em retirada. Por essa occasião o soldado da segunda companhia Theotonio Pereira Bacellar, que por se achar muito estropeado não poude acomlpanhar, a guarda foi degolado por um bandido. Immediatamente, dispuz a força para a defensiva, fazendo collocar em distancia conveniente do acantonamento uma linha de atiradores, que causou logo enormes claros nas fileiras dos bandidos. Estes, não obstante, avançaram sempre, fazendo fogo, aos gritos de viva o nosso Bom Jesus! Viva o nosso Conselheiro! Viva a monarchia! etc., etc., etc, chegando até alguns a tentarem cortar a facão os nossos soldados. Um delles trazia alçada uma grande cruz de madeira, e muitos outros traziam imagens de sanctos em vultos. Avançaram e brigaram com incrivel ferocidade, servindo-se de apitos para execução de seus movimentos e manobras."

Trecho do livro: Descrição de uma Viagem a Canudos, de Alvim Martins Horcades, 1899. Estudante de Medicina que vai para a Guerra como voluntário do Hospital de Sangue do Exército Republicano.

"Em uma dessas casas penetramos e a impressão foi a mais horrível: dezenas de homens, mulheres e crianças mortos quase todos à fome e sede e também quase privados da fala e de mistura com diversos corpos, que, gélidos adormeciam. Compungiu-me sobremodo a maneira por que estava uma menina de dez anos, tendo os lábios cobertos de pus e ressequidos pela sede que martirizava-a sentada debaixo de uma mesa, junto a uma velha, coberta de chagas,com uma bacia na mão, toda crivada de balas".

Relato sobre o massacre de prisioneiros de Canudos pelas tropas federais da Republica 

[...] Eu vi e assisti a sacrificar-se todos aqueles miseráveis (...) e com sinceridade o digo: em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros (...) levar-se homens de braços atados para trás como criminosos de lesa-majestade, indefesos e perto mesmo de seus companheiros, para maior escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora o de uma ave, e cortar com o assassino ferro o pescoço, deixando a cabeça cair sobre o solo - é o cumulo do banditismo praticado a sangue-frio (...) Assassinar-se uma mulher pelo simples fato de ser o seu companheiro conivente com o que se dava - é o auge da miséria! Arrancar-se a vida a uma criancinha (...) é o maior dos barbarismos e dos crimes que o homem pode praticar.

Trecho da reportagem enviada por Manuel Benício, Militar correspondente de guerra em Canudos para o Jornal do Comércio, Agosto de 1897.  

Informe de 6 de agosto de 1897.

"Certa incúria que tinha imperado desde o inicio da marcha da primeira coluna, dando lugar aos oficiais e praças não receberem ração desde Monte Santo, deixando que o comboio que vinha na retaguarda fosse assaltado, caindo nas mãos dos jagunços cerca de 200 mil cartuchos e carretas de víveres, provocando a carnificina horrorosa e sem proveito dos dias de 27 e 28 de junho no alto da Favela, a fome, a sede, flagelando os soldados que para não morrerem em conseqüência dela subiam pelos campos a carnear, morrendo centenas deles nas emboscadas dos inimigos."

 
Informe de 8 de agosto de 1897, reza:

"O General Artur Oscar age como entende, pouco atendendo à opinião dos companheiros. Devido a isto é que colocou-os nesta posição. " (...) Os jagunços reúnem até, nos cercados, bois e cabras e ficam ocultos por detrás dos cercos. Os famintos soldados arrojam-se sobre os ruminantes, matam-nos e eis que cheios de alegria tentam soltá-los, quando chove sobre eles uma saraivada de balas certeiras que fazem fugir os mais felizes.  Os jagunços então acabam de matar os feridos e saqueiam as munições deles."

Manuel benicio para o jornal do comércio

Diário de oficial morto em combate, achado por Manuel Benício e transcrito em seu livro, O Rei dos Jagunços, 1899.

"Como ruge este inferno tumultuosamente em desordem! Soldados sequiosos, esguridos, maltrapilhos,escassez de água, fartura de porcaria, burros que se devoram o pelo, clarins que tocam e que ninguém atende, cavaleiros que passam levantando o pó, resmungamento rouco de quem sucumbe à fome, respirações cansadas, gemidos pungentes, um brado ao longe, bois que mugem e morrem, mulheres de cócoras como múmias, falta de medicamento para os feridos nas malas da ambulância médica, um tiro desgarrado, uma ordem que não se cumpre, cavalos escavando o chão, todos varados de fome, feridos esmolando o que comer, burros lambendo a crosta da terra, ar de estupor nas fisionomias lúgubres, ambulância cheia de conserva, vinho, água do Setz e ovos em lata!- Um punhado de farinha senão eu morro! - Bangüês trazendo mortos e feridos com bicheiras, doentes no pó, oficiais deitados na poeira, praças ao pé, vento e sol canicular, poeira, exalação fétida, horrível, podre, dos cadáveres insepultos, animais assombrados em esparrame no meio do povo, gritos palavrões, ameaças, tudo sofre; a fome tortura, o calor queima, a sede abrasa, a poeira sufoca e olhos esbugalhados fitam o vácuo:
Quem os poderá fechar no meio estonteador deste inferno tumultuariamente em desordem?
 Morro da Favela 30-6-1897".

Depoimentos de sobreviventes de Canudos

Manuel Ciriaco, antigo morador de Canudos, declarou em 1947:

"No tempo do Conselheiro, não gosto nem de falar pra não passar por mentiroso, havia de tudo, por estes arredores. Dava de tudo e até cana-de-açúcar de se descascar com a unha, nascia bonitona por estes lados. Legumes em abundância e chuvas a vontade."

Honório Vilanova, sobrevivente de Canudos e irmão de Antônio Vilanova, um dos principais lideres conselheiristas, declarou ao escritor Nertan Macedo:

"Grande era a Canudos do meu tempo. Quem tinha roça, tratava da roça na beira do rio. Quem tinha gado, tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos, tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de rezar, ia rezar. De tudo se tratava, porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino. (MACEDO, Nertan. Memorial de Vilanova. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1964)










  

sábado, 17 de abril de 2010

Mossoró: a cidade que bateu lampião

Em seu processo de ataques as mais variadas cidades do Nordeste brasileiro levou Lampião a cogitar atacar uma das mais prosperas cidades do Rio Grande do Norte, Mossoró. A empreitada de Lampião sobre Mossoró era uma vontade antiga que foi colocada em prática em meados de junho de 1927.

Samuel Lima

   Assim que Virgulino Ferreira (Lampião) acabará de atacar a vila de São Sebastião, organizou o futuro ataque a Mossoró, como de praxe, enviou um recado ameaçador alegando que se caso não lhe fosse pago a quantia devida que pedia para não invadir a cidade (400 contos de reis), o Capitão e o seus cabras a atacariam. 
   A notícia logo circulou nos meios de informação da cidade, o prefeito, Coronel Rodolfo Fernandes, assim que toma conhecimento da ameaça alerta a população da cidade que já estava de sobre aviso desde a invasão de Lampião a Vila de São Sebastião. Porém, o prefeito não responde a altura dos anceios dos cangaceiros e nega pagar tal quantia. Enfurecido, Virgulino manda um novo recado ameaçador para a cidade:    
 "Cel Rodopho, estando eu aqui pretendo é dinheiro. Já foi um aviso pra sinhoris, si por acauso rezolver mia mandar, será a importança que aqui nos pedi. Eu evito de entrada ahi porem não vindo esta emportança eu entrarei, ate ahi penço qui a deus querer eu entro e vai aver muito, por isto se vir o dinheiro eu não entro ahi mas no resposte logo"   
Capitão Lampião.
   O Prefeito, Coronel Rodolfo Fernandes, não cogita em pagar tal quantia, apesar de possui-lá nos cofres públicos, e desafia Lampião a entrar na cidade para pegar a quantia. O povo de Mossoró  temendo o confronto, e com apoio do poder público local, começa a fugir da cidade logo na manhã de 13 de junho de 1927. O prefeito, em ação rápida, ja tinha, muito antes, pedido apoio militar ao governo do estado, que em resposta, só lhe manda armas.  
   As 16:00 da tarde  do dia 13 de junho, os cangaceiros sob o comando de Virgulino, invadem Mossoró com um total de 53 cabras, a cidade que já esperava tal ataque, possuia um contigente de defesa em média de 150 homens armados para o combate. No passar de uma hora de confronto, os cangaceiros perderam um cabra morto em combate, colchete, e um capturado, Jararaca. Percebendo que não suportaria tal combate, Lampião decide recuar para não perder mais homens.   
   Mossoró tinha acabado de derrotar o cangaceiro mais famoso do sertão nordestino e do Brasil, o que fez com que a fama de invencível de Virgulino e seus cangaceiros caísse paulatinamente no imaginário da época.
   No dia 14, o cangaceiro Jararaca (José Leite de Santana), pernambucano de 22 anos, foi interrogado na delegacia de Mossoró sobre sua ação no bando e  deu intrevista ao jornalista Lauro de Escóssia do jornal Mossoroense. Dias depois, após melhorar do ferimento a bala que tinha recibo no combate, foi levado para o cemitério da cidade. Jararaca quando percebeu que iria morrer ao ser levado para o cemitério proferiu a seguinte frase: "Sei que vou morrer. Vão ver como se morre um cangaceiro!", o cangeceiro foi morto pela tropa polícial que o acompanhava que estava sob as ordens do Capitão Abdon Nunes, que tempo depois relatou como foi a eliminação do cangaceiro.    
" Foi-lhe dada uma coronhada e uma punhalada mortal. O bandido deu um grande urro e caiu na cova, empurrado - que já estava aberta a sua espera-. Os soldados cobriram-lhe o corpo com areia."  Foi o fim de Jararaca.


domingo, 11 de abril de 2010

A Operação Barbarossa: a invasão da Wehrmacht a URSS, 1941 (parte I)

Na noite do dia 22 de junho de 1941, tropas alemãs atravessam a Polônia ocupada e invadem a URSS em um grande esforço de guerra que determinou uma grande perda humana e de material bélico para as forças armadas soviéticas.

Por Samuel Lima

   Em um ataque surpresa, a Alemanha nazista invade a União Soviética em grande velocidade de ataque, o exército soviético que estava estacionado nas regiões das fronteiras, sofre inicial de 1.500 aviões destruídos no solo, milhares de tanques aniquilados, e um saldo de quase dois milhões de soldados capturados.

   O ataque alemão contou com três linhas ofensivas, um grupo sul em direção a Kiev, capital da Ucrania, um grupo central em direção a Smolensk e um grupo norte em direção a Leningrado.

   As tropas alemãs levaram vantagem em tão rápido espaço de tempo devido as linhas de defesas soviéticas não terem sido utilizadas, e sim avançadas para as fronteiras, o que facilitou ao exercito nazista conseguir aplicar grandes baixas humanas e materiais a URSS.

   A grande retomada do campo de batalha soviética se dá com a chamada de Stalin "A Grande Guerra Patriótica" e a as ações de seus generais na toamda defensiva, entre estes, o destaque fica com as ações do Marechal Timochenko, que no comando de cinco exércitos consegue barrar por um mês as tropas nazistas, impedindo seu avanço em escala maior sobre o território soviético.

   Mesmo com as ações do Marechal Timochenko, as URSS sofreu perdas em números expressivos, as tropas nazistas cercaram Leningrado centenas de soldados foram perdidos pela URSS, somados as incalculáveis perdas de aviões e tanques. Contudo, no decorrer do mês de outubro e meados de novembro rigorosa chuva tornou as estradas intransitavéis forçando as tropas nazistas ficarem no controle das regiões tomadas e pararem o avanço no território soviético, só retomando suas ações em meados de 15 de novembro com a melhora do tempo.

As defesas de Belo Monte: táticas, ações e estrátegias conselheristas na Guerra de Canudos

Em pleno vigor das batalhas, as tropas conselheristas usaram de várias formas de ataque e defesa contra o forte e bem armado exercito republicano nas quatro investidas que sofreu.
                                                          
 Por Samuel Lima

   O modelo usado pelo comando militar de conselheiro tomou corpo de definição assim que o Arraial de Belo Monte começou a ser estruturado para garantia dos anceios dos seus moradores. A iniciativa partiu do próprio Conselheiro, que assim que fixa-se em Canudos, manda que seja construído trincheiras ao redor do arraial como meio de garantir a proteção do povoado, pois temia que canudos fosse invadido devido a perseguição que sofrera desde as querelas de 1893 na cidade de Masseté.
   O meio de defesa e ataque dos conselheirista eram inovadores para a época. As tropas do exército brasileiro sofreu grande revés devido ao não conhecimento dos planos e ações de defesa adotados por conselheiro e seu comando militar. Entre os exemplos de ação de guerrilha, podemos citar:

Camuflagem

   A roupa nos tons bege e o entrincheiramento camuflavam os conselheiristas, que também se vestiam de folhas, traziam campainhas ao pescoço e berravam como carneiros para se aproximar do inimigo. Já o fardamento das tropas do exercito brasileiro eram de tons fortes e de fácil identificação no teatro do conflito.

Disfarce

   Com as fardas dos soldados mortos, os homens do Conselheiro se misturavam à tropa para sabotar atividades internas, causando confusão e medo.

Túneis

   Túneis entre as casas e nas extremidades do arraial permitiam circular despercebido e surgir de repente, surpreendendo o inimigo. Os casebres tinham ainda "seteiras" ou aberturas nas paredes, para esconder atiradores e facilitar o ataque de longo e curto alcance.

Ataque a logistica do exercito

   Ataques a animais de tração, condutores da artilharia e dos carroções de suprimentos e munições. Não havia pressa em assaltar, em seguida, um inimigo assim imobilizado e apavorado no terreno.Também era forma de impedir o avanço do canhão Withworth (a "matadeira") e das baterias de canhões Trupp.

Franco atiradores

   O "tiro de ofensa ao acaso e de enervamento" era dado de longa distância em intermitência regular e incessante, dia e noite. Chegou a causar de dez a 15 baixas em 24 horas e disseminou terror pelo acampamento do Exército. Os conselheiristas também faziam linha de tiro cerrada, o que se tornou comum em todos os conflitos do século 20.

Guerra psicologica

   Os cadaveres do soldados do exercito e dos oficiais mortos em combates eram dilacerados e depois colocados nos galhos de árvores, no chão ou suspenso com intenção de abater a moral do exercito e causar terror entre as tropas.

sábado, 3 de abril de 2010



Cuidado com o tigre!
Bichos mortos nas ruas, dejetos atirados ao mar, doenças se
propagando: o insalubre cotidiano da capital pernambucana nos tempos do Império                          

      Manuela Arruda dos Santos
   As grandes cidades brasileiras não eram exatamente localidades agradáveis no século XIX. Sujo, nojento e enlameado, o cenário urbano se compunha de carniças, bichos mortos, alimentos podres e outras imundícies abandonadas perto das pontes e nas praias.

   O Recife, assim como o Rio de Janeiro e Salvador, sofria com sérios problemas provocados pelo inchaço populacional. Numa época em que o sistema de esgotos ainda não existia, o que fazer com os dejetos e águas sujas – ou “águas servidas” –, produzidos diariamente pela população? Nas cercanias da cidade e em locais onde existiam grandes terrenos, era fácil abrir buracos para servir de fossas, mas também se atirava de tudo diretamente nos rios e mangues. No apertado centro, porém, era mais complicado livrar-se dos dejetos.

   Nesse tempo, imperava nas cidades um fedor que, hoje, dificilmente podemos conceber. Nas ruas e nos becos estreitos, os maus cheiros se confundiam. Nas praças, vísceras de animais e restos de vegetais estragados compunham um ambiente insalubre. Dentro das casas, cozinhas sem ventilação tornavam o ar viciado, com exalações pútridas de matérias orgânicas em decomposição. Nos quartos, poeira e mofo se misturavam ao cheiro dos penicos.

   Todo dia de manhã, eles eram esvaziados em barris de madeira que ficavam embaixo das escadas ou em um canto mais recolhido da casa. Quando o tonel já estava quase transbordando, recorria-se ao “préstimo” do escravo! Era sobre as cabeças deles que o peso das barricas era conduzido para ser despejado na “beira” das marés. Em seguida, os carregadores retornavam com os recipientes vazios para receber nova carga.

   Esses barris eram chamados de “tigres” e os seus condutores, de “tigreiros”. Talvez o nome fosse uma alusão à coragem dos carregadores ou, quem sabe, à imagem desagradável das barricas que, ao transbordar, espalhavam fezes nos corpos dos escravos e dos negros de ganho, numa combinação que lembrava a pelagem dos tigres. Existem versões que afirmam que o apelido foi dado porque, ao avistar os negros levando barris de dejetos, os transeuntes, com medo de ficarem sujos, afastavam-se rapidamente, como se fugissem de um animal selvagem.

   Quando um “tigre” passava, as pessoas tapavam o nariz com lenços, viravam o rosto, se encolhiam. De longe, os “tigreiros” vinham alertando os moradores com seu bordão “Abra o olho! Abra o olho!” Os passantes se esquivavam, com medo de que um simples esbarrão acarretasse um banho asqueroso.

   Para os médicos higienistas, o vai-e-vem dos barris de dejetos pelas ruas aumentava o perigo dos miasmas — como eram chamadas as supostas emanações que corriam pelo ar, na época consideradas responsáveis por moléstias, como os surtos de “febres malignas”, sarampo, varíola, disenterias, lepra, sarnas, oftalmias e tantas outras doenças tão comuns ao longo de todo o século XIX.

   A princípio, as imundícies e o lixo doméstico podiam ser despejados em qualquer lugar. Até que, em 1843, um edital da administração municipal estabeleceu locais apropriados para isso. Mas como a falta de recursos limitava a fiscalização, a sujeira continuou sendo jogada em áreas proibidas.

   O tratamento dado aos dejetos líquidos gerava freqüentes queixas dos moradores, porque outro hábito comum na cidade era o despejo dos penicos cheios do alto dos sobrados, sem perdoar o caminhante que passava distraído pela rua, a qualquer hora do dia ou da noite. Os algozes ficavam à espreita por trás das janelas dos sobrados, esperando algum desafeto passar para “honrá-lo” com excrementos atirados pela janela. A situação era tão séria que em 1831 a Câmara Municipal editou um regulamento determinando que o arremesso de “águas servidas” para a rua só poderia ser feito à noite, e, mesmo assim, após ser dado um aviso prévio por três vezes seguidas: “Água vai!... Água vai!... Água vai!...”.

   O infrator estaria sujeito a multa e deveria pagar indenização pelos prejuízos causados à vítima. Mais uma vez, a lei não “pegou”: banhos involuntários e mal-cheirosos continuaram marcando a paisagem recifense, o que causava repulsa aos viajantes estrangeiros, como Charles Darwin (1809-1882), que, de passagem pelo Recife em 1836, afirmou que a cidade tinha um aspecto repugnante: “as ruas são estreitas, mal calçadas e imundas”. Já o naturalista escocês George Gardner (1812-1849) considerava todas as cidades e capitais do país terrivelmente sujas. Recife, segundo Gardner, era “pouco recomendável para quem não tem negócios a tratar”.

   Em abril de 1840, o Diário de Pernambuco publicou mais uma denúncia sobre o não-cumprimento da proibição do despejo de dejetos do alto dos sobrados. Rogava-se que as autoridades policiais lançassem suas vistas de “piedade e caridade para a infeliz e imunda Rua do Livramento, onde em pleno dia são lançadas da casa do Tesoureiro Geral uma fartura d’águas pútridas, por seus escravos, os quais, apesar de advertidos, continuam em tal procedimento, transformando a rua em lamoso charco, que causa miasmas fétidos e nocivos à salubridade pública”. O artigo relata que os vizinhos não podiam conter a náusea diante do mau cheiro.

   À medida que o Recife crescia e a produção de dejetos aumentava, o trânsito de “tigres” ficava cada vez mais freqüente. A situação se agravava nas épocas de epidemia. Foram as constantes moléstias que serviram de base para a reformulação das noções de higiene. Entre as iniciativas para controlar as emanações maléficas, foram pavimentadas e drenadas algumas ruas. O espaço público também passou a ser lavado com a ajuda de moradores, e foram publicadas instruções favoráveis à circulação do ar e da água, como a construção de chafarizes com água potável e a proibição de sepultamentos dentro das igrejas. Incentivado pelos governantes e pelos médicos higienistas, o banho, que ainda não era um costume diário para boa parte da população, passou a ser visto como uma defesa suplementar contra as doenças. Já em alguns pontos das margens do Rio Capibaribe existiam pequenos cercados feitos de palha onde as famílias iam banhar-se, protegidas dos olhares alheios.

   Os “tigres” também entraram na mira das autoridades. Um relatório sobre a saúde pública, apresentado à Presidência da Província em 1854, ressaltava a inconveniência de se transportarem dejetos em barricas, e propunha sua substituição por latrinas móveis e hermeticamente fechadas. Em 1858, houve a primeira tentativa de organização de uma empresa responsável por implantar um sistema moderno de esgotos na cidade. Acreditava-se que com tal empreendimento o Recife ganharia ares de civilidade, tendo como referência as idéias francesas. Sendo assim, não foi por acaso que um francês, o engenheiro Charles-Louis Cambronne, obteve o direito de explorar o serviço, cujo contrato previa o escoamento das “águas servidas” para o rio, por meio de canos de ferro ou grés (espécie de cerâmica vitrificada).

   Já as matérias sólidas seriam depositadas em caixas de madeira revestidas de metal, que a empresa forneceria a cada domicílio. Após quinze dias, esses depósitos seriam transportados para locais distantes por carros da companhia, que também se ocuparia da coleta do lixo doméstico e das ruas. As obras levariam cinco anos e os contribuintes pagariam uma quantia anual pelo serviço.

   A primeira tentativa não deu certo. Os custos para a concretização do projeto eram elevados e a população não via com bons olhos tantas mudanças, mas, mesmo assim, em 1865 foi renovado o contrato com o engenheiro francês. Cláusulas adicionais previam que Cambronne deveria assegurar à população um sistema completo de limpeza e escoamento de dejetos das casas existentes e das que viessem a ser construídas. Prédios e sobrados tinham que ter ao menos uma latrina (vaso sanitário) por andar. Seriam construídos vasos e mictórios públicos, e a cidade ficaria divida em três distritos: Recife, Santo Antônio (que englobava a freguesia de São José) e Boa Vista. No intuito de regularizar a coleta, a empresa teria preferência na remoção do lixo dos domicílios, regularizando assim o trabalho que antes estava a cargo de escravos e negros de ganho. O sistema proposto era o mais eficiente da época, exigindo dupla canalização, emprego de máquinas a vapor e adoção de aparelhos a sifão, semelhantes aos de Londres, com abundante suprimento de água.

   O fato é que, por volta de 1867, os jornais da cidade reclamavam que o projeto dos esgotos ainda não havia saído completamente do papel, pois o número de latrinas era insuficiente e a canalização dos esgotos não chegara a boa parte das casas. Descontente, a população apelidou de “cambrone” os aparelhos de latrina. A companhia, por sua vez, argumentava que os moradores não utilizavam os vasos corretamente, lançando panos, ossos, espinhas de peixe e outros resíduos de cozinha, o que obstruía o sistema e causava prejuízos.

   O sistema de esgotos funcionou precariamente durante a segunda metade do século XIX, contribuindo para a proliferação de epidemias, principalmente as de tifo e disenteria. Sem manutenção e higienização adequadas, as latrinas se transformaram em focos de ratos e baratas dentro das casas. O mau estado de conservação dos canos provocava a contaminação do solo, e as descargas eram insuficientes. Assim, os “tigres” continuariam a passear com seus repugnantes conteúdos pelas ruas do Recife, e durante muitos anos ainda se ouviria falar das feras terríveis que ali vagavam durante a noite.

MANUELA ARRUDA DOS SANTOS é mestranda em História Social da Cultura Regional na Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde desenvolve a pesquisa "Higienizar para civilizar: a mudança de percepção em relação ao lixo no Recife (1830-1845)".
Pacto com o diabo também tem história: “Um barão perseguido pelo diabo”, de Gilberto Freyre e suas possíveis articulações com Guimarães Rosa

por Julierme Sebastião Morais Souza



   Adentrar ao universo da literatura primando pela ênfase em analisar a apropriação do mito de literário de Fausto, indubitavelmente não é tarefa simples. Mais complexo ainda, torna-se quando há a necessidade de lograr uma análise pertinente com a temática submersa no âmago da literatura brasileira, precisamente a “literatura regionalista”. Não obstante, o desafio é que move este artigo. Assim, partindo da proposta de análise da resignificação do mito literário de Fausto na literatura brasileira, dos primórdios à pós-modernidade, busca-se debruçar sobre a crônica Um barão perseguido pelo diabo[1], de Gilberto Freyre, com fito de aprofundamento na apropriação que o autor dá à temática do “pacto com o diabo” na obra em voga.

   Desse modo, este artigo delineia-se em dois momentos distintos que, correlacionados, formam um arcabouço importante para o desenvolvimento da análise proposta. No primeiro, temos o intuito de historicizar, mesmo que sinteticamente, as apropriações do mito de Fausto ao longo dos tempos. Certamente, a literatura brasileira não fica à margem desse mito. Neste sentido, há necessidade de, em um segundo momento, evidenciar a característica “sui generis” da literatura brasileira concernente à temática do mito de Fausto, aprofundando-se na análise literária de Um barão perseguido pelo diabo no propósito de enfocar seus aspectos estruturais como: o tempo, o espaço, o narrador, o enredo, o possível logro e as personagens, bem como uma sucinta, mas necessária, argumentação sobre alguns aspectos sociais, históricos e culturais que envolvem o momento de produção da obra e seu autor.

   Se nos reportamos à historiografia, encontraremos alguns documentos do século XVI que identificam o “suposto” Fausto como um homem excêntrico que faz um trato com o demônio em busca de conhecimento popular. Esses documentos, por sua vez, sofrem metamorfoses ao longo dos tempos pela tradição oral, influenciando, de maneira sensível, a literatura. Dessa maneira, há um movimento em que a tradição oral fornece bases para o “tecido faústico”[2] do âmbito literário, tendo sua gênese, ainda século XVI, com os escritos de Marlowe no drama A trágica história de doutor Fausto.

   No entanto, é no século XIX, com o Fausto, de Johann Wolfgang Von Goethe, que o homem excêntrico que pactua com o diabo ganha campo acadêmico e se transforma em um cânone. O Fausto de Goethe é a matriz de uma imensurável bibliografia que trata do tema, propiciando uma leitura de O primeiro fausto, de Fernando Pessoa, até Doutor Fausto, de Thomas Mann. Nesta corrente, também há uma infinidade de obras artísticas que se entrincheiram nas artes plásticas, passando pelo teatro, chegando às telas dos cinemas.

   Seguindo esta linha de raciocínio, reforçando os argumentos de Jerusa Pires Ferreira, o tecido faústico é “um contínuo vai e vem, da transmissão oral ao universo do livro”[3]. Acrescentaríamos: ao universo das artes em geral. As asserções de Ferreira atinentes ao relacionamento estreito entre a oralidade e a literatura, ou seja, do popular: da tradição com o erudito: a escrita demonstra um movimento contínuo e dialético bastante interessante. Nos termos do historiador Carlo Ginzburg, isto caracteriza uma “circularidade cultural”, na medida em que envolve uma reciprocidade entre popular e erudito que, por muito tempo, foi desconsiderada[4].

   Dessa forma, os pontos nodais do “tecido faústico” ganham alguns traços peculiares quando nos reportamos à literatura brasileira, precisamente os aspectos que envolvem os imaginários erudito e popular. Nesta literatura, há uma gama de manifestações da “circularidade cultural”, sobretudo quando a temática faústica adentra ao “lócus” privilegiado do sertão brasileiro.

   Em textos de expressivos intelectuais nacionais, particularmente Grande sertão: Veredas[5], de João Guimarães Rosa, e Um barão perseguido pelo diabo, de Gilberto Freyre, a circularidade cultural é emblemática, pois, apesar trazida a público por intelectuais, são oriundas do âmbito popular, isto é, da tradição oral. Em outros termos, a temática faústica percorre, de maneira frutífera, o caminho ininterrupto entre o popular e o erudito sem restrições.

   Tomando como ponto de partida o texto de Gilberto Freyre, é preciso uma consistente análise do gênero literário no qual ele se enquadra. Nesse sentido, torna-se relevante a obra de Massaud Moisés[6]. Historicizando o gênero da “crônica”, Moisés enfatiza dois momentos de sua significação. Um primeiro, em seu surgimento na França, por volta do século XVIII, muito atrelado à história enquanto ramo do conhecimento, porém, com fortes traços de ficção literária; e um segundo, a partir do século XIX, no qual ocorre sua libertação da conotação historicista, bem como a legitimação de seu sentido estritamente literário, que lhe garante amplo espaço em função da difusão da imprensa.

   De acordo com Moisés, automaticamente, a “crônica” adere ao jornal registrando o dia-a-dia, todavia, sem perder suas características literárias. Estas características, por sua vez, no Brasil são mais evidentes, uma vez que proporcionaram uma aclimatização e transformação da crônica de origem francesa. Assim, Moisés esboça essa transformação com altas doses de idiossincrasia, afirmando:

   A rigor, mesmo que originária da França — como de resto tantas manifestações literárias ao longo do século XIX —, a crônica assumiu entre nós caráter sui generis. Em outros termos, estamos criando uma nova forma de crônica (ou dando erradamente esse rótulo a um gênero novo) que nunca medrou na França. Crônica é, para nós hoje, na maioria dos casos, prosa poemática, humor lírico, fantasia, etc., afastando-se do sentido de história, de documentário que lhe emprestaram os franceses[7].

   A ênfase no caráter nacional da crônica demonstra certo nacionalismo do autor. Contudo, no momento é pertinente destacar sua problematização da crônica como gênero literário. Atendo-se à ambigüidade da crônica, Moisés esboça que esta se move entre “ser” no jornal e “estar” no jornal, pois se destina, inicialmente, a ser lida no jornal ou revista, porém difere-se

[...] da matéria substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de fazer do cotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera informação: o seu objetivo, confesso ou não, reside em transcender o dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista de oficio[8].

   Em suma, Moisés coteja o oficio do cronista e do jornalista exprimindo que “o cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento sua porção imanente de fantasia”[9].

   Com base nos argumentos de Moisés, podemos buscar as características do texto de Gilberto Freyre no intuito de entender O Barão perseguido pelo diabo enquanto uma crônica[10]. Segundo Moisés, “a crônica oscila, pois, entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia”[11].Se atentarmos para o texto de Freyre, notaremos todas essas características em seu corpo, e ainda, à luz de uma análise mais aprofundada, teremos a perfeita projeção da transcendência do dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades latentes. Neste caso, essa virtualidade (o pacto com o diabo) atinge de forma imensurável a característica universal; basta olharmos para a resignificação do mito faústico elaborada por Freyre, assim como para o caráter singular e inexaurível de universalidade que seu texto propõe.

   As propostas de Moisés rendem muito mais para a análise do texto de Gilberto Freyre. Ao delinear as relações entre a “crônica” e o “conto”, Moisés aponta que “a crônica voltada para o horizonte do conto prima pelo ‘não eu’”, isto é, pelo acontecimento que provocou a atenção do escritor. Porém, não denota que o escritor, o “eu”, se distancie de maneira impenetrável do acontecimento, uma vez que a “própria crônica testemunha uma adesão interessada” por ele[12]. Desse modo, segundo o autor, “[...] o meio termo entre acontecimento e lirismo parece o lugar ideal da crônica”; sendo que o texto situado entre o “eu” e o “não eu” é primordial para tal caracterização[13].

   Quanto às características específicas da crônica, situada na oscilação entre o acontecimento e o lirismo, Moisés expressa a brevidade da mesma. No texto de Freyre, esta característica é candente, pois são duas laudas para o barão e o visconde perseguidos pelo diabo. Outro aspecto importante é o da subjetividade. Segundo o autor:

   Na crônica, o foco narrativo situa-se invariavelmente na primeira pessoa do singular; mesmo quando o “não-eu” avulta por encerrar um acontecimento de monta, o “eu” está presente de forma direta ou na transmissão do acontecimento segundo sua visão pessoal. A impessoalidade e não só desconhecida como rejeitada pelos cronistas: é a sua visão das coisas que lhes importa e ao leitor; a veracidade positiva dos acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que os cronistas divisam o mundo[14].

   Partindo das principais características que Moisés atribui à crônica, com efeito, podemos argumentar que, no texto de Freyre, a visão pessoal emerge com grande vigor, na medida em que o “eu” está presente de forma muito intensa, explicitando-se de forma irrefreável no final do conto, quando o escritor afirma: “Não parece que fosse o caso do barão pernambucano de quem as más línguas do Recife durante anos espalharam que era uma vez por outra ‘levado pelo diabo’”[15].

   Nesta passagem acima, a característica essencial de uma crônica, segundo Moisés, aparece de forma latente. Gilberto Freyre, após descrever os acontecimentos e demonstrar as circunstâncias, expõe de forma bem concisa sua perspectiva. Em outras palavras, de forma emotiva divisa o mundo, e coloca uma questão que será abordada mais adiante acerca da dúvida no pactário do barão. Nesse sentido, podemos dizer que o texto de Freyre é uma crônica[16].

   Cumpre ressaltar que, o autor de Casa grande & senzala[17], Sobrados e Mocambos[18] e Ordem e Progresso[19], também se aventurou na ficção demonstrando, assim, certo apreço por este ramo da escrita com obras como Dona sinhá e o filho padre[20] e O outro amor do dr. Paulo[21]. E ainda, suas inquietações atinentes ao diabo na sociedade brasileira, são expostas pela primeira vez em Casa grande & senzala, especificamente no capítulo dedicado às influências dos indígenas na formação da família brasileira. Freyre já apontava danças para o diabo ou “Jurupari” — denominação para o diabo entre os indígenas — com fito de amedrontar as mulheres e as crianças, conservando-as em ordem. O escritor evidencia que, de caráter moralizador e pedagógico, essas danças carregavam consigo um importante simbolismo, na medida em que máscaras utilizadas nesses rituais eram consideradas sagradas e de misterioso poder. Dando voz a Freyre, podemos verificar com maior riqueza de detalhes esses rituais:

   Eram máscaras imitando animais demoníacos nos quais supunha o selvagem transformarem-se os mortos, e sua eficácia mágica era aumentada pelo fato de serem humanos ou de origem animal muitos dos materiais de sua composição: cabelo de gente, pêlo de bichos, pernas etc. Por sua vez, o dançarino devia imitar os movimentos e vozes do animal demoníaco [...][22]

   Desse modo, esboçando o caráter da historicidade em sua análise, Freyre demonstra que os Jesuítas, ao chegarem ao Brasil, conservaram as danças indígenas para o “Jupari”, porém, lhe atribuindo um caráter cômico. Tal comicidade buscava o efeito de desprestigiar o controle social indígena ancorado na emblemática figura do diabo, bem como fomentar um outro modo de controle social: o do cristianismo, ancorado na figura de Deus. No entanto, mesmo resignificado e com alguns traços da cultura européia, o medo do diabo e de suas variantes personificações permaneceu candente na cultura brasileira a ponto de fundir-se em uma única tendência que arregimenta ao mesmo tempo o “Jupari” indígena e o diabo católico.

   Com efeito, tal medo do diabo é exemplificado pelo autor com os quase que instintivos interesses dos meninos brasileiros por “bichos temíveis”, pelos contos que amedrontam e pelas reincidentes narrativas de contato visual com “assombrações”, tanto por parte de descentes de indígenas, quanto por parte de europeus. Assim, Freyre demonstra que a cultura totêmica e animista do indígena marcou sensivelmente os traços do caráter do brasileiro, que é “por excelência o povo da crença no sobrenatural: em tudo o que nos rodeia sentimos o toque de influências estranhas, de vez em quando os jornais revelam casos de aparições, mal-assombrados, encantamentos”[23].

   Diante do exposto, podemos adentrar especificamente à crônica Um barão perseguido pelo diabo. A crônica de Freyre aborda a história de dois indivíduos do Recife que pactuaram com o diabo no século XIX: um, barão pernambucano muito conhecido, mas com posses distantes da cidade, o outro, um visconde morador no Recife. Toda a crônica do autor chega ao ponto derradeiro demonstrando que o esforço de ambos para livrar-se do pacto com o diabo foi infrutífero. Todavia, a diferença dos pactos tem um primado nessa crônica, e no corpo do texto podemos notar que há uma grande ênfase na história do barão em detrimento da do visconde.

   O barão, quando ia ao Recife desfrutava de todos os luxos que um lorde do período poderia desfrutar. Segundo Freyre, “[...] vida alegre e descuidada. Jantava no Tôrres. Divertia-se no teatro vendo cômicas. Ia afofado em carro de luxo às corridas do Piranga”[24]. Entretanto, “[...] de repente, recebia um sinal misterioso: era o chifrudo para ir encontrá-lo sozinho nas brenhas, tarde da noite — noite sem lua; e como que refrescar a assinatura no trato que levianamente fizera com o príncipe Negro”[25]. Algum tempo depois, voltava do encontro quase degenerado, porém, como era “homem respeitado e estimado” por seus parentes, recebia os devidos cuidados voltando a si aos poucos. Daí, há meses, recebia o chamado novamente.

   Esta especulação de Freyre leva em consideração a perspectiva do pactário enquanto um contrato que necessitava ser renovado de tempos em tempos, além de evidenciar que não havia logro do diabo, fator corriqueiro na literatura regionalista que se apropria do mito faústico, principalmente na literatura de cordel.

   Sobre o visconde, Freyre aborda que, “[...] quando morreu, o diabo ficou não só com sua alma como seu corpo. E que para fingir enterrá-lo em Santo Amaro, a família tivera que encher o caixão de pedra”[26]. Aqui aparece o viés do pactário que enfoca a proposta da venda da alma ao diabo[27] “pari passu” à perspectiva oral, segundo a qual o corpo do visconde também foi levado pelo diabo.

   Neste sentido, em oportuna passagem, Jerusa Pires Ferreira demonstra claramente a oralidade popular como mola propulsora dessa perspectiva de pacto, no qual a alma e o corpo são levados pelo demônio. Ao tecer asserções sobre os “causos” que enfatizam a temática, a autora afirma que, certa vez, um empregado rural, em São Gonçalo dos Campos, Bahia, contou-lhe “[…] da morte de vários ricos, que o ‘cão’ viera buscar pessoalmente, obrigando a família a encher o caixão com toros de bananeira, para evitar a vergonha de se carregar um caixão sem peso”[28].

   Seguindo esta linha de raciocínio, podemos notar que a oralidade popular carrega consigo um complexo de significações constituídas pelo imaginário. Nesse sentido, é inevitável dar voz a Cornelius Castoriadis. Ao estabelecer uma relação estreita entre memória e História, o filósofo aborda que de forma automática penetramos no campo do imaginário, uma vez que a história humana torna-se impossível de ser encarada fora desta categoria.

   Neste estudo acerca de questões que passam pela relação entre o imaginário e simbolismo infiltrando-se nas perspectivas de formação de instituições imaginárias, o Castoriadis conceitua imaginário como sendo a capacidade humana para a representação do mundo, com o que lhe confere sentido ontológico; sendo que, própria do ser humano, essa capacidade de criação e recriação do real forma uma espécie de energia criadora[29]. E ainda:

   A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora, do que nós chamamos o imaginário radical tal como se manifesta ao mesmo tempo e indissoluvelmente no fazer histórico, e na constituição, antes de qualquer racionalidade explícita, de um universo de significações[30].

   Ou seja, a essa condição de construção imaginária do real herdada pelos seres humanos, o filósofo denomina “imaginário radical” aquilo se materializa na fonte de todo o simbólico. Por conseguinte:

   O mundo social é cada vez constituído e articulado em função de um sistema de tais significações, e essas significações existem, uma vez constituídas, na forma do que chamamos o imaginário efetivo (ou imaginado). É só relativamente a essas significações que podemos compreender, tanto a ‘escolha’ que cada sociedade faz de seu simbolismo, e principalmente de seu simbolismo institucional, como os fins aos quais ela subordina a ‘funcionalidade’[31].

   Desta maneira, a atividade social que atribui sentido ao mundo, construída a partir das condições históricas e apoiada naquela energia criadora, recebe o nome de imaginário efetivo. Este, por sua vez, é sempre um imaginário simbólico, operando segundo lógicas próprias e conferindo existência significada ao real. Em suma, para Castoriadis existem dois estágios da formação do imaginário coletivo. O primeiro momento é o imaginário radical, o qual exprime a condição de construir o real; e o segundo é o imaginário efetivo, efetivando a atividade social que dá sentido ao mundo.

  Assim, a oralidade popular (imaginário efetivo) é essa atividade social que dá sentido aos “causos” (imaginário radical), cuja ordem do processo não é uma relação de causa e efeito, portanto, podendo alimentar-se reciprocamente. Este processo é de extrema importância na obra de Gilberto Freyre, pois seu aparato de informações é todo auferido na oralidade popular, isto é, no imaginário coletivo, cujas representações do real tomam formas de idiossincrasia.

   Freyre, ao utilizar termos como: “se conta”, “diz-se”, “ninguém explicava”, evidencia sua proposta de escrever o que lhe foi contado. Desse modo, enquadrar o narrador dessa crônica ao modelo de “narrador ideal”, exemplificado por Walter Benjamin com Nicolai Leskov[32], de modo algum, é irrelevante, mas, sim, ganha um automatismo preponderante. Para Benjamin, a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que todos narradores recorrem, assim, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos diversos narradores anônimos[33].

   Ao desmembrar algumas características do narrador, Benjamin faz a clivagem de dois modelos nos quais o narrador pode se enquadrar: ao dos viajantes, ao passo que, “quem viaja tem muito que contar”, e dos que não viajam muito, mas que, entretanto, são grandes conhecedores das histórias e tradições de seu país e de seu povo[34]. Nesse sentido, sem exorbitar os limites da arte de cotejar, podemos tecer correlações desses modelos de narrador a Gilberto Freyre. No que tange a sua “figura”, por si só, somos remetidos à sua posição de acadêmico estudioso da cultura brasileira, porém torna-se importante a evidência de que é nascido no Recife, local social que tanto fomentou suas preocupações sócio-culturais e suas enveredadas no âmbito das tradições. Esta ambivalência que Freyre congrega e que, de maneira indelével está presente em sua crônica, suscita-nos que esse autor é, sim, um narrador aos moldes que Walter Benjamim salienta.

   O narrador de Benjamim “[...] retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”[35]. A tradição oral é a mola propulsora da narrativa, mas também se alimenta desta, por vezes a resignificando, por outras, não. Nesta medida, inferimos que a crônica de Gilberto Freyre é exatamente isso, pois a tradição oral a alimenta, no entanto, não logrando um movimento conciso de causa e efeito, mas, sim, também podendo ser alimentada pela narrativa.

   A tradição oral, o movimento de contar as histórias e a perspectiva artesanal está presentes na crônica, engendrando uma narrativa que traz ao leitor o extraordinário e o miraculoso. Neste caso, os pactos elaborados por Gilberto Freyre são narrados com a maior exatidão, mesmo que paradoxalmente haja dúvidas, sobretudo no pacto do barão. Não impondo o contexto psicológico das ações dos personagens ao leitor, Freyre, por sua vez, “[...] é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”[36]. Gilberto Freyre busca na memória sua fonte para a crônica, e segundo Walter Benjamin,

   A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em ultima instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores [...][37]

   Desta forma, quando Freyre articula as histórias do barão e do visconde, é empreitado um movimento da memória que, a priori é difuso, porém permite ao leitor perceber o fio condutor da narrativa: o pacto. Este, desse modo, é o cerne das duas histórias, fomentador da crônica, cujos pontos nodais são tecidos em função de um projeto maior, ou seja, do projeto de narrar as histórias e diferenciar os respectivos pactos.

   Com efeito, podemos salientar que, nessa crônica, Gilberto Freyre demonstra a capacidade de narrador, particularmente aquele narrador abordado por Walter Benjamin. Um narrador que,

[...] pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida[38].

   Neste sentido, o fator de maior significação na crônica de Gilberto Freyre é a dúvida com relação ao pacto do barão. Segundo Freyre, o barão “[...] não era homem de quem dissesse: quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão”[39]. Sua explicação é de que havia entre os lordes da época gente mais gananciosa que o este barão, “[...] quem amasse o dinheiro ou fosse doente pelo ouro, ganho ou aumentado de qualquer modo: mesmo com a ajuda do diabo”[40].

   Dessa forma, é interessante observar aqui que, tanto na crônica de Gilberto Freyre, quanto em Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, há uma dúvida concernente ao pacto. A personagem Riobaldo, de Rosa, e o Barão, de Freyre, padecem da dúvida que os aniquila e atormenta: fizemos ou não o pacto? De imediato é inevitável a supremacia da metafísica e do esoterismo nas propostas concernentes ao pacto.

   Em Grande sertão: Veredas e em Um barão perseguido pelo diabo a singularidade de narrativas construídas sobre a dúvida/incerteza do pacto dá mostras da capacidade da literatura brasileira em apropriar-se do mito de Fausto de maneiras diferenciadas. Na obra salutar de Guimarães Rosa há o primado da incerteza do pacto em detrimento da soberba faustiana em busca do conhecimento total dos benefícios que o pacto traria para a personagem-narrador Riobaldo. Do mesmo modo, o Barão de Gilberto Freyre não se pergunta sobre o pacto, porém, sua história é contada sob uma perspectiva de dúvida na narrativa.Desse modo, o campo de destaque das duas histórias é o pacto com diabo, entretanto nos termos da dúvida, assim como das perspectivas deste provável pacto. Em resumo, da incerteza.

   Indubitavelmente, a preponderância da dúvida nos remete ao cotejo das duas histórias e, ao mesmo tempo, proporciona uma melhor observação de elementos convergentes nas narrativas. Em Guimarães Rosa, o temor da materialização da coisa ligada a pronuncia do nome faz com que o diabo ganhe vários pseudônimos na narrativa de Riobaldo. Nela aparecem: Arrenegado, Cão, Cramulhão, Indivíduo, Galhardo, Pé-de-Pato, Homem, Tisnado, Coxo, Temba, Azarape, Coisa-Ruim[41]. O mesmo ocorre em Gilberto Freyre quando o próprio narrador pronuncia-se a respeito do diabo, chamando-o de: Cornudo, Príncipe das Trevas, Chifrudo, Príncipe negro, Canhoto, Maldito[42]. Nesse sentido, surge uma outra dúvida que, certamente, não é tarefa simples de decifração. Será que Rosa e Freyre “nadavam na mesma corrente” com relação ao pacto faustiano?

   Contudo, à luz de um primeiro exame, podemos algumas informações sintéticas a esse respeito. A primeira edição de Um barão perseguido pelo diabo é de 1955, e a de Grande sertão: Veredas data de 1956. Estando Guimarães Rosa, em Minas Gerais, e Gilberto Freyre, no Recife. Aí está um frutífero campo a ser desbravado: Quais aproximações e distanciamentos podem ser retirados da perspectiva do pactário em Freyre e Rosa? Longe de lograr uma proposta perene de análise atinente à articulação desses dois autores, abre-se um campo de discussão importante. Com efeito, a proposta está lançada, cabendo agora aos “cérebros” estudiosos dessa imensurável literatura uma atenção maior a esses dois autores, não de forma isolada, mas, sim, em suas correlações.

Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) onde é Mestrando pelo Programa de Pós Graduação em História (PPHIS), integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC) e bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).