sábado, 3 de abril de 2010

Quaresma à moda
Ao contrário da tradição católica, que prega a privação e o recolhimento, a Quaresma na Colônia era marcada por festejos e procissões


Por Georgina Santos

   No Brasil, o carnaval custa a terminar. Arrasta multidões para as ruas de Norte a Sul, avançando sem pudores sobre o limite determinado pela quarta-feira de Cinzas. A atração exercida pelos folguedos vem de longe e deu o que fazer ao clero e às autoridades municipais ainda nos primeiros tempos da colonização.

   Entre 1604 e 1691, uma série de alvarás e posturas tentou conter os abusos praticados durante o entrudo, ancestral do nosso carnaval. Com a intenção de afastar os colonos das batalhas recreativas com baldes d’água, ovos, laranjinhas e limões de cheiro, os jesuítas introduziram, em 1616, a adoração de quarenta horas no decorrer do entrudo – como haviam feito em Portugal uma década antes, pelo mesmo motivo. Ao longo dos três dias de folia, o Santíssimo Sacramento ficava exposto dia e noite num altar iluminado pela chama de vinte velas. Mas o empenho dos padres em antecipar o clima da Quaresma e destronar o entrudo foi insuficiente, e a iniciativa caiu no esquecimento.

   Passado o tempo de excessos, enfim a Igreja poderia fazer valer suas orientações. Afinal, os quarenta dias que separam o carnaval da Páscoa eram considerados, desde o século VII, um período preparatório dedicado ao jejum, às privações voluntárias e às mortificações capazes de aproximar os fiéis do sofrimento vivenciado por Cristo.

   Mas não era bem assim que funcionava no Brasil. Ao longo da Quaresma, uma série de eventos religiosos levava a população a se deslocar permanentemente entre missas e procissões, agitando a vida social a tal ponto que as idéias de contrição e recolhimento evaporavam.

   Parte desse desvirtuamento se explica pela própria natureza de nossa colonização. Foi lenta a instalação dos bispados em todo o território, e era pequeno o número de clérigos capazes de orientar a população. O resultado foi, no geral, uma formação católica bastante superficial. Não eram incomuns atos de franca zombaria e desrespeito às figuras sagradas. Thomas Luis Teixeira, ex-alferes da infantaria e morador de Belém, foi denunciado ao Santo Ofício no Estado do Grão-Pará, em 1773, por desacato à imagem de Cristo durante uma procissão da Quaresma. Thomas teria lançado com força, do sobrado onde morava, um vaso “de imundícies fétidas, escarosas” sobre o andor que carregava o Senhor Crucificado. O impacto da pancada foi tamanho que espatifou a imagem e cobriu de excrementos os participantes do cortejo.

   E nem é o caso de se culpar somente os colonos por sua fé pouco ortodoxa. Em Portugal, na mesma época, a Quaresma estava longe de ser um período de abstinência e meditação. Havia procissões todas as sextas-feiras, e o recomendado jejum era facilmente substituído por doações caridosas às obras de alguma paróquia. Assim, podia-se comer à vontade, sem remorso. Toda procissão virava pretexto para reuniões, bailes familiares e encenações cômicas regados a chás e bolos. Até os monges se permitiam substituir a manteiga e o açúcar do arroz-doce por leite de amêndoas.

   Na Colônia, como em Portugal, o início da Quaresma era marcado pela Procissão das Cinzas, realizada na quarta-feira após o carnaval, sempre por iniciativa da Ordem Terceira de São Francisco. Instituído no Rio de Janeiro, em Salvador e em Olinda no século XVII, o cortejo passou a integrar o calendário das festas religiosas do Recife, da Paraíba, de São Luís e de Vila Rica (Ouro Preto) somente no século seguinte. No Rio, o evento aconteceu pela primeira vez em 1647 e, desde então, tornou-se o mais espetaculoso da cidade.

   Anjos, virgens, confrades enfeitados, devotos com tochas acesas, clérigos e guardas militares desfilavam acompanhados de vinte andores adornados com luxo e riqueza. Após as salvas de mosquetaria, a procissão descia a Ladeira de Santo Antônio, atravessava o Largo da Carioca e percorria as principais ruas do Centro, detendo-se nas várias igrejas do percurso. No fim, o préstito retornava ao Morro de Santo Antônio, onde a irmandade distribuía amêndoas e confeitos às crianças que haviam figurado como anjos no cortejo.

   O evento das Cinzas também ficou conhecido como Procissão da Penitência. Uma referência explícita ao exército de flagelantes que, para purgar seus pecados, lanhavam os ombros com navalhas, bolas de cera aramadas ou cacos de vidro à saída do préstito. A cena causava comoção entre os católicos praticantes e os espectadores mais sensíveis, mas provocou estranheza no viajante francês Le Gentil de La Barbinais, que considerou o espetáculo extravagante e falso, ao visitar Salvador em 1717. Sobretudo depois de constatar que muitos participantes se mortificavam com violência diante das donzelas para despertar compaixão.

   Em Olinda e no Recife, o cortejo também atraía multidões. Na capital pernambucana, a procissão era aberta pelo “papa-angu”, figura que se vestia com uma longa túnica preta, mantendo a cabeça coberta por um capuz com dois orifícios na altura dos olhos, e munido de um comprido relho, destinado a fustigar aqueles que obstruíam sua passagem. Conhecido noutras paragens como “farricoco”, o tipo participava de outros cortejos, como o do Senhor dos Passos, criado para recordar o drama de Jesus Cristo até o calvário. A procissão assumia a forma de um teatro volante e detinha-se em vários pontos para encenar os episódios mais marcantes da Paixão. Em Portugal, acreditava-se que aqueles que seguissem por sete anos a fio a procissão dos Passos teriam a garantia de não morrer em pecado mortal.

   O clímax das cerimônias religiosas ocorria na Semana Santa, com as procissões de Fogaréus, na quinta-feira de Endoenças, e do Senhor Morto, na sexta-feira da Paixão. Organizada pela Santa Casa da Misericórdia, a de Endoenças recordava a Última Ceia e não exibia andores nem imagens de santos ou da Virgem, apenas um painel com o Cristo coroado de espinhos. Duas longas filas de homens vestidos com casacões negros de capuz iluminavam o trajeto com uma espécie de candeeiro preso a uma vara de pau, daí o nome Fogaréus. Uma legião de flagelantes catalisava as atenções: nus da cintura para cima e armados de chicotes, açoitavam a si mesmos insuflados pelos farricocos.

   No dia seguinte, sexta-feira da Paixão, tinha lugar a procissão do Senhor Morto ou do Enterro, realizada pela Ordem Terceira do Carmo. No Rio de Janeiro, o evento teve início em 1658 com toda pompa e circunstância: aberto pela guarda militar, conduzia uma grande cruz alçada com o Santo Sudário trançado em seus braços, escoltado por tocheiros. Na seqüência, crianças ricamente vestidas de anjos carregavam os emblemas da Paixão e abriam caminho para os irmãos do Carmo. Atrás, sob um luxuoso pálio cercado de círios com tochas de cera roxa, avistava-se um esquife de prata com o Senhor Morto, parcialmente coberto por um manto violeta de franjas douradas. O ataúde se deslocava sobre o ombro de clérigos, “convidados mediante pagamento de compensadora propina”.

   Ávidas por demonstrar sua sincera devoção e as qualidades morais de seus membros, as famílias mais notáveis acompanhavam o féretro representando personagens da Paixão: Madalena, São João Evangelista, Verônica, José de Arimatéia e Nicodemos. Em seguida vinham o Anjo Cantor – representado por uma jovem escolhida entre as famílias mais abastadas –, a guarda romana e a imagem de Nossa Senhora das Dores, ladeada por uma guarda de honra e trajada com um manto de veludo bordado a ouro, jóias valiosas e um resplendor de ouro sobre a coroa. Encerrando o desfile, a banda, com seus instrumentos adornados por laços de crepe, executava as marchas fúnebres que embalavam o cortejo.

   O espetáculo da procissão do Senhor Morto era disputadíssimo e atraía praticamente toda a população da cidade, movimentando o comércio ambulante. Nas calçadas e no vão das portas, negras vendiam bijus, pamonhas, cuscuz e arroz-doce em seus tabuleiros, faturando para si e para as sinhás. A mesma oportunidade tinham os aguadeiros e os vendedores de aluá (espécie de suco com frutas ou farinha). Os privilegiados, que moravam no itinerário da procissão, ornavam suas janelas com colchas de damasco e recebiam, com gosto ou a contragosto, parentes e amigos para assistir ao desfile.

   No sábado de Aleluia, era a vez de um rito vibrante e barulhento: a malhação do Judas. Representado por bonecos de palha ou de pano, preso em postes de iluminação pública ou em galhos de árvores (numa alusão ao seu suicídio), o apóstolo traidor era queimado pelos populares aos gritos, logo depois que os sinos anunciavam a aleluia litúrgica. Personificação das forças do mal, a boneco do Judas é, segundo alguns, um resquício de antigos ritos agrários europeus. A destruição de sua imagem representava para as comunidades camponesas a expurgação do mal e a certeza de uma boa colheita. Embora revestida de significado cristão, a prática adquiriu nova função: limitar as ações consideradas impróprias à comunidade que malha o Judas – em seu corpo desengonçado coloca-se o nome da vizinha fofoqueira, do marido adúltero, do comerciante ganancioso... O ato depura as ações e os pensamentos nocivos de cada um dos participantes, preparando-os para a renovação anunciada pelo domingo de Páscoa.

   Depois de longos quarenta dias de “privação”, é hora enfim de festejar: que venham os presentes e os ovos de chocolate!

Georgina Santos é professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de Ofício e sangue: a Irmandade de São Jorge a Inquisição na Lisboa Moderna (Lisboa: Edições Colibri, 2005).



Ovo que vem de longe

Coelhinho da Páscoa, o que trazes pra mim?
Um ovo, dois ovos, três ovos assim
Coelhinho da Páscoa, que cor eles têm?
Azul, amarelo e vermelho também.

   A quadrinha popular que se ouve na voz da criançada com a proximidade da Páscoa anuncia a troca de guloseimas no domingo que encerra a Semana Santa. A tradição é antiga na Europa, remonta ao século XIII, quando os estudantes da Universidade de Paris, após entoarem salmos e cânticos de louvor a Deus em frente à catedral, saíam, organizados em procissão, recolhendo presentes. As ofertas, especialmente ovos, eram distribuídas para parentes, amigos e vizinhos. Os ovos, tingidos de azul ou vermelho, simbolizavam o renascimento, a ressurreição e a imortalidade.

   Confeccionados em madeira ou argila, com o tempo eles passaram a ser pintados e decorados com requinte. No Brasil, o costume de receber e distribuir ovos de Páscoa data apenas dos anos 1920, introduzido pela colonização alemã nas cidades do Sul. Aos poucos, a prática se espalhou em massa de chocolate pelas confeitarias do resto do país, para o pecado de todos.

Doce pecado

   Em nossa tradição, é impossível não associar o chocolate à Páscoa, festa maior do cristianismo. Desejar “Feliz Páscoa” a alguém é um costume que quase sempre vem acompanhado de um presente previsível: um ovo de chocolate – ou, simplesmente, um “ovo de Páscoa”. Mas a relação entre a iguaria e a religião que está na base da cultura ocidental nem sempre foi pacífica.

   A guloseima, originalmente consumida por “pagãos” americanos e que caiu no gosto das altas rodas da Europa, era cercada de mistérios, como no caso dos chocolates aromáticos das cortes italianas, como revela Eddy Stols nesta edição. Os Médici, titulares do grão-ducado da Toscana, mantinham segredo absoluto sobre a receita do chocolate com aroma de jasmim, cobiçado por outras casas européias. Sua fórmula era guardada em uma caixa-forte. A Igreja, como se sabe, não via com bons olhos mistérios que não estavam sob sua guarda.

   Mas o apreço pelo produto não era resultado apenas do aroma irresistível ou do paladar inigualável. Além de saboroso, o chocolate era apreciado por suas virtudes terapêuticas. Em meio a um verdadeiro frenesi, não tardaram a surgir, no século XVII, as primeiras denúncias de abuso na sua ingestão. E numa época profundamente marcada pela religião, o debate se dava na esfera da Igreja. De um lado, jesuítas cantavam as delícias do cacau; do outro, os dominicanos lamentavam o novo vício europeu.

   A Europa, terra do vinho, era aos poucos invadida por legiões de beberrões de chocolate – inicialmente a Espanha, e posteriormente o resto do continente; nos cafés que se multiplicavam no rastro de outra bebida famosa, homens amanheciam em busca das primeiras doses do líquido turvo; nos palácios e nas casas mais refinadas, as xícaras passavam a figurar ao lado das taças, em lugar de destaque. Quente ou gelado, líquido ou pastoso, puro ou com aguardente, tomava-se chocolate de todas as maneiras, com o objetivo de estimular os sentidos de formas inusitadas.

   Acreditava-se ainda que o chocolate possuía a propriedade de aquecer o sangue, despertando “virtudes” que eram sistematicamente combatidas pela Igreja. O italiano Francesco Arisi, autor de um tratado intitulado Il cioccolato, de 1736, versejava contra a iguaria:

Nos torrões já é usado,
Nas tortas é o principal.
Penso, pois, que ainda um dia,
Vão servi-lo com codornas,
Desdenhando o santo pão
Ou colocando-o de parte.

   Os próprios jesuítas, que elogiaram seu uso na Itália, chegaram a dizer em Portugal, onde o hábito de beber chocolate se alastrou no século XVIII, que o produto era um estimulante sexual. Contrariando a interpretação tradicional de S. Tomás de Aquino, para quem líquidos não quebravam o jejum, exigiram sua proibição durante o período da Quaresma, quando os cristãos deveriam se afastar dos prazeres da carne (em todos os sentidos). Tentativa inútil, pois o papa, em Roma, cedendo à pressão dos primeiros chocólatras, e para a felicidade de quase todos, autorizou o pecado durante o ano inteiro.

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