sábado, 3 de abril de 2010



Cuidado com o tigre!
Bichos mortos nas ruas, dejetos atirados ao mar, doenças se
propagando: o insalubre cotidiano da capital pernambucana nos tempos do Império                          

      Manuela Arruda dos Santos
   As grandes cidades brasileiras não eram exatamente localidades agradáveis no século XIX. Sujo, nojento e enlameado, o cenário urbano se compunha de carniças, bichos mortos, alimentos podres e outras imundícies abandonadas perto das pontes e nas praias.

   O Recife, assim como o Rio de Janeiro e Salvador, sofria com sérios problemas provocados pelo inchaço populacional. Numa época em que o sistema de esgotos ainda não existia, o que fazer com os dejetos e águas sujas – ou “águas servidas” –, produzidos diariamente pela população? Nas cercanias da cidade e em locais onde existiam grandes terrenos, era fácil abrir buracos para servir de fossas, mas também se atirava de tudo diretamente nos rios e mangues. No apertado centro, porém, era mais complicado livrar-se dos dejetos.

   Nesse tempo, imperava nas cidades um fedor que, hoje, dificilmente podemos conceber. Nas ruas e nos becos estreitos, os maus cheiros se confundiam. Nas praças, vísceras de animais e restos de vegetais estragados compunham um ambiente insalubre. Dentro das casas, cozinhas sem ventilação tornavam o ar viciado, com exalações pútridas de matérias orgânicas em decomposição. Nos quartos, poeira e mofo se misturavam ao cheiro dos penicos.

   Todo dia de manhã, eles eram esvaziados em barris de madeira que ficavam embaixo das escadas ou em um canto mais recolhido da casa. Quando o tonel já estava quase transbordando, recorria-se ao “préstimo” do escravo! Era sobre as cabeças deles que o peso das barricas era conduzido para ser despejado na “beira” das marés. Em seguida, os carregadores retornavam com os recipientes vazios para receber nova carga.

   Esses barris eram chamados de “tigres” e os seus condutores, de “tigreiros”. Talvez o nome fosse uma alusão à coragem dos carregadores ou, quem sabe, à imagem desagradável das barricas que, ao transbordar, espalhavam fezes nos corpos dos escravos e dos negros de ganho, numa combinação que lembrava a pelagem dos tigres. Existem versões que afirmam que o apelido foi dado porque, ao avistar os negros levando barris de dejetos, os transeuntes, com medo de ficarem sujos, afastavam-se rapidamente, como se fugissem de um animal selvagem.

   Quando um “tigre” passava, as pessoas tapavam o nariz com lenços, viravam o rosto, se encolhiam. De longe, os “tigreiros” vinham alertando os moradores com seu bordão “Abra o olho! Abra o olho!” Os passantes se esquivavam, com medo de que um simples esbarrão acarretasse um banho asqueroso.

   Para os médicos higienistas, o vai-e-vem dos barris de dejetos pelas ruas aumentava o perigo dos miasmas — como eram chamadas as supostas emanações que corriam pelo ar, na época consideradas responsáveis por moléstias, como os surtos de “febres malignas”, sarampo, varíola, disenterias, lepra, sarnas, oftalmias e tantas outras doenças tão comuns ao longo de todo o século XIX.

   A princípio, as imundícies e o lixo doméstico podiam ser despejados em qualquer lugar. Até que, em 1843, um edital da administração municipal estabeleceu locais apropriados para isso. Mas como a falta de recursos limitava a fiscalização, a sujeira continuou sendo jogada em áreas proibidas.

   O tratamento dado aos dejetos líquidos gerava freqüentes queixas dos moradores, porque outro hábito comum na cidade era o despejo dos penicos cheios do alto dos sobrados, sem perdoar o caminhante que passava distraído pela rua, a qualquer hora do dia ou da noite. Os algozes ficavam à espreita por trás das janelas dos sobrados, esperando algum desafeto passar para “honrá-lo” com excrementos atirados pela janela. A situação era tão séria que em 1831 a Câmara Municipal editou um regulamento determinando que o arremesso de “águas servidas” para a rua só poderia ser feito à noite, e, mesmo assim, após ser dado um aviso prévio por três vezes seguidas: “Água vai!... Água vai!... Água vai!...”.

   O infrator estaria sujeito a multa e deveria pagar indenização pelos prejuízos causados à vítima. Mais uma vez, a lei não “pegou”: banhos involuntários e mal-cheirosos continuaram marcando a paisagem recifense, o que causava repulsa aos viajantes estrangeiros, como Charles Darwin (1809-1882), que, de passagem pelo Recife em 1836, afirmou que a cidade tinha um aspecto repugnante: “as ruas são estreitas, mal calçadas e imundas”. Já o naturalista escocês George Gardner (1812-1849) considerava todas as cidades e capitais do país terrivelmente sujas. Recife, segundo Gardner, era “pouco recomendável para quem não tem negócios a tratar”.

   Em abril de 1840, o Diário de Pernambuco publicou mais uma denúncia sobre o não-cumprimento da proibição do despejo de dejetos do alto dos sobrados. Rogava-se que as autoridades policiais lançassem suas vistas de “piedade e caridade para a infeliz e imunda Rua do Livramento, onde em pleno dia são lançadas da casa do Tesoureiro Geral uma fartura d’águas pútridas, por seus escravos, os quais, apesar de advertidos, continuam em tal procedimento, transformando a rua em lamoso charco, que causa miasmas fétidos e nocivos à salubridade pública”. O artigo relata que os vizinhos não podiam conter a náusea diante do mau cheiro.

   À medida que o Recife crescia e a produção de dejetos aumentava, o trânsito de “tigres” ficava cada vez mais freqüente. A situação se agravava nas épocas de epidemia. Foram as constantes moléstias que serviram de base para a reformulação das noções de higiene. Entre as iniciativas para controlar as emanações maléficas, foram pavimentadas e drenadas algumas ruas. O espaço público também passou a ser lavado com a ajuda de moradores, e foram publicadas instruções favoráveis à circulação do ar e da água, como a construção de chafarizes com água potável e a proibição de sepultamentos dentro das igrejas. Incentivado pelos governantes e pelos médicos higienistas, o banho, que ainda não era um costume diário para boa parte da população, passou a ser visto como uma defesa suplementar contra as doenças. Já em alguns pontos das margens do Rio Capibaribe existiam pequenos cercados feitos de palha onde as famílias iam banhar-se, protegidas dos olhares alheios.

   Os “tigres” também entraram na mira das autoridades. Um relatório sobre a saúde pública, apresentado à Presidência da Província em 1854, ressaltava a inconveniência de se transportarem dejetos em barricas, e propunha sua substituição por latrinas móveis e hermeticamente fechadas. Em 1858, houve a primeira tentativa de organização de uma empresa responsável por implantar um sistema moderno de esgotos na cidade. Acreditava-se que com tal empreendimento o Recife ganharia ares de civilidade, tendo como referência as idéias francesas. Sendo assim, não foi por acaso que um francês, o engenheiro Charles-Louis Cambronne, obteve o direito de explorar o serviço, cujo contrato previa o escoamento das “águas servidas” para o rio, por meio de canos de ferro ou grés (espécie de cerâmica vitrificada).

   Já as matérias sólidas seriam depositadas em caixas de madeira revestidas de metal, que a empresa forneceria a cada domicílio. Após quinze dias, esses depósitos seriam transportados para locais distantes por carros da companhia, que também se ocuparia da coleta do lixo doméstico e das ruas. As obras levariam cinco anos e os contribuintes pagariam uma quantia anual pelo serviço.

   A primeira tentativa não deu certo. Os custos para a concretização do projeto eram elevados e a população não via com bons olhos tantas mudanças, mas, mesmo assim, em 1865 foi renovado o contrato com o engenheiro francês. Cláusulas adicionais previam que Cambronne deveria assegurar à população um sistema completo de limpeza e escoamento de dejetos das casas existentes e das que viessem a ser construídas. Prédios e sobrados tinham que ter ao menos uma latrina (vaso sanitário) por andar. Seriam construídos vasos e mictórios públicos, e a cidade ficaria divida em três distritos: Recife, Santo Antônio (que englobava a freguesia de São José) e Boa Vista. No intuito de regularizar a coleta, a empresa teria preferência na remoção do lixo dos domicílios, regularizando assim o trabalho que antes estava a cargo de escravos e negros de ganho. O sistema proposto era o mais eficiente da época, exigindo dupla canalização, emprego de máquinas a vapor e adoção de aparelhos a sifão, semelhantes aos de Londres, com abundante suprimento de água.

   O fato é que, por volta de 1867, os jornais da cidade reclamavam que o projeto dos esgotos ainda não havia saído completamente do papel, pois o número de latrinas era insuficiente e a canalização dos esgotos não chegara a boa parte das casas. Descontente, a população apelidou de “cambrone” os aparelhos de latrina. A companhia, por sua vez, argumentava que os moradores não utilizavam os vasos corretamente, lançando panos, ossos, espinhas de peixe e outros resíduos de cozinha, o que obstruía o sistema e causava prejuízos.

   O sistema de esgotos funcionou precariamente durante a segunda metade do século XIX, contribuindo para a proliferação de epidemias, principalmente as de tifo e disenteria. Sem manutenção e higienização adequadas, as latrinas se transformaram em focos de ratos e baratas dentro das casas. O mau estado de conservação dos canos provocava a contaminação do solo, e as descargas eram insuficientes. Assim, os “tigres” continuariam a passear com seus repugnantes conteúdos pelas ruas do Recife, e durante muitos anos ainda se ouviria falar das feras terríveis que ali vagavam durante a noite.

MANUELA ARRUDA DOS SANTOS é mestranda em História Social da Cultura Regional na Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde desenvolve a pesquisa "Higienizar para civilizar: a mudança de percepção em relação ao lixo no Recife (1830-1845)".

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