sábado, 3 de abril de 2010

Pacto com o diabo também tem história: “Um barão perseguido pelo diabo”, de Gilberto Freyre e suas possíveis articulações com Guimarães Rosa

por Julierme Sebastião Morais Souza



   Adentrar ao universo da literatura primando pela ênfase em analisar a apropriação do mito de literário de Fausto, indubitavelmente não é tarefa simples. Mais complexo ainda, torna-se quando há a necessidade de lograr uma análise pertinente com a temática submersa no âmago da literatura brasileira, precisamente a “literatura regionalista”. Não obstante, o desafio é que move este artigo. Assim, partindo da proposta de análise da resignificação do mito literário de Fausto na literatura brasileira, dos primórdios à pós-modernidade, busca-se debruçar sobre a crônica Um barão perseguido pelo diabo[1], de Gilberto Freyre, com fito de aprofundamento na apropriação que o autor dá à temática do “pacto com o diabo” na obra em voga.

   Desse modo, este artigo delineia-se em dois momentos distintos que, correlacionados, formam um arcabouço importante para o desenvolvimento da análise proposta. No primeiro, temos o intuito de historicizar, mesmo que sinteticamente, as apropriações do mito de Fausto ao longo dos tempos. Certamente, a literatura brasileira não fica à margem desse mito. Neste sentido, há necessidade de, em um segundo momento, evidenciar a característica “sui generis” da literatura brasileira concernente à temática do mito de Fausto, aprofundando-se na análise literária de Um barão perseguido pelo diabo no propósito de enfocar seus aspectos estruturais como: o tempo, o espaço, o narrador, o enredo, o possível logro e as personagens, bem como uma sucinta, mas necessária, argumentação sobre alguns aspectos sociais, históricos e culturais que envolvem o momento de produção da obra e seu autor.

   Se nos reportamos à historiografia, encontraremos alguns documentos do século XVI que identificam o “suposto” Fausto como um homem excêntrico que faz um trato com o demônio em busca de conhecimento popular. Esses documentos, por sua vez, sofrem metamorfoses ao longo dos tempos pela tradição oral, influenciando, de maneira sensível, a literatura. Dessa maneira, há um movimento em que a tradição oral fornece bases para o “tecido faústico”[2] do âmbito literário, tendo sua gênese, ainda século XVI, com os escritos de Marlowe no drama A trágica história de doutor Fausto.

   No entanto, é no século XIX, com o Fausto, de Johann Wolfgang Von Goethe, que o homem excêntrico que pactua com o diabo ganha campo acadêmico e se transforma em um cânone. O Fausto de Goethe é a matriz de uma imensurável bibliografia que trata do tema, propiciando uma leitura de O primeiro fausto, de Fernando Pessoa, até Doutor Fausto, de Thomas Mann. Nesta corrente, também há uma infinidade de obras artísticas que se entrincheiram nas artes plásticas, passando pelo teatro, chegando às telas dos cinemas.

   Seguindo esta linha de raciocínio, reforçando os argumentos de Jerusa Pires Ferreira, o tecido faústico é “um contínuo vai e vem, da transmissão oral ao universo do livro”[3]. Acrescentaríamos: ao universo das artes em geral. As asserções de Ferreira atinentes ao relacionamento estreito entre a oralidade e a literatura, ou seja, do popular: da tradição com o erudito: a escrita demonstra um movimento contínuo e dialético bastante interessante. Nos termos do historiador Carlo Ginzburg, isto caracteriza uma “circularidade cultural”, na medida em que envolve uma reciprocidade entre popular e erudito que, por muito tempo, foi desconsiderada[4].

   Dessa forma, os pontos nodais do “tecido faústico” ganham alguns traços peculiares quando nos reportamos à literatura brasileira, precisamente os aspectos que envolvem os imaginários erudito e popular. Nesta literatura, há uma gama de manifestações da “circularidade cultural”, sobretudo quando a temática faústica adentra ao “lócus” privilegiado do sertão brasileiro.

   Em textos de expressivos intelectuais nacionais, particularmente Grande sertão: Veredas[5], de João Guimarães Rosa, e Um barão perseguido pelo diabo, de Gilberto Freyre, a circularidade cultural é emblemática, pois, apesar trazida a público por intelectuais, são oriundas do âmbito popular, isto é, da tradição oral. Em outros termos, a temática faústica percorre, de maneira frutífera, o caminho ininterrupto entre o popular e o erudito sem restrições.

   Tomando como ponto de partida o texto de Gilberto Freyre, é preciso uma consistente análise do gênero literário no qual ele se enquadra. Nesse sentido, torna-se relevante a obra de Massaud Moisés[6]. Historicizando o gênero da “crônica”, Moisés enfatiza dois momentos de sua significação. Um primeiro, em seu surgimento na França, por volta do século XVIII, muito atrelado à história enquanto ramo do conhecimento, porém, com fortes traços de ficção literária; e um segundo, a partir do século XIX, no qual ocorre sua libertação da conotação historicista, bem como a legitimação de seu sentido estritamente literário, que lhe garante amplo espaço em função da difusão da imprensa.

   De acordo com Moisés, automaticamente, a “crônica” adere ao jornal registrando o dia-a-dia, todavia, sem perder suas características literárias. Estas características, por sua vez, no Brasil são mais evidentes, uma vez que proporcionaram uma aclimatização e transformação da crônica de origem francesa. Assim, Moisés esboça essa transformação com altas doses de idiossincrasia, afirmando:

   A rigor, mesmo que originária da França — como de resto tantas manifestações literárias ao longo do século XIX —, a crônica assumiu entre nós caráter sui generis. Em outros termos, estamos criando uma nova forma de crônica (ou dando erradamente esse rótulo a um gênero novo) que nunca medrou na França. Crônica é, para nós hoje, na maioria dos casos, prosa poemática, humor lírico, fantasia, etc., afastando-se do sentido de história, de documentário que lhe emprestaram os franceses[7].

   A ênfase no caráter nacional da crônica demonstra certo nacionalismo do autor. Contudo, no momento é pertinente destacar sua problematização da crônica como gênero literário. Atendo-se à ambigüidade da crônica, Moisés esboça que esta se move entre “ser” no jornal e “estar” no jornal, pois se destina, inicialmente, a ser lida no jornal ou revista, porém difere-se

[...] da matéria substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de fazer do cotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera informação: o seu objetivo, confesso ou não, reside em transcender o dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista de oficio[8].

   Em suma, Moisés coteja o oficio do cronista e do jornalista exprimindo que “o cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento sua porção imanente de fantasia”[9].

   Com base nos argumentos de Moisés, podemos buscar as características do texto de Gilberto Freyre no intuito de entender O Barão perseguido pelo diabo enquanto uma crônica[10]. Segundo Moisés, “a crônica oscila, pois, entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia”[11].Se atentarmos para o texto de Freyre, notaremos todas essas características em seu corpo, e ainda, à luz de uma análise mais aprofundada, teremos a perfeita projeção da transcendência do dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades latentes. Neste caso, essa virtualidade (o pacto com o diabo) atinge de forma imensurável a característica universal; basta olharmos para a resignificação do mito faústico elaborada por Freyre, assim como para o caráter singular e inexaurível de universalidade que seu texto propõe.

   As propostas de Moisés rendem muito mais para a análise do texto de Gilberto Freyre. Ao delinear as relações entre a “crônica” e o “conto”, Moisés aponta que “a crônica voltada para o horizonte do conto prima pelo ‘não eu’”, isto é, pelo acontecimento que provocou a atenção do escritor. Porém, não denota que o escritor, o “eu”, se distancie de maneira impenetrável do acontecimento, uma vez que a “própria crônica testemunha uma adesão interessada” por ele[12]. Desse modo, segundo o autor, “[...] o meio termo entre acontecimento e lirismo parece o lugar ideal da crônica”; sendo que o texto situado entre o “eu” e o “não eu” é primordial para tal caracterização[13].

   Quanto às características específicas da crônica, situada na oscilação entre o acontecimento e o lirismo, Moisés expressa a brevidade da mesma. No texto de Freyre, esta característica é candente, pois são duas laudas para o barão e o visconde perseguidos pelo diabo. Outro aspecto importante é o da subjetividade. Segundo o autor:

   Na crônica, o foco narrativo situa-se invariavelmente na primeira pessoa do singular; mesmo quando o “não-eu” avulta por encerrar um acontecimento de monta, o “eu” está presente de forma direta ou na transmissão do acontecimento segundo sua visão pessoal. A impessoalidade e não só desconhecida como rejeitada pelos cronistas: é a sua visão das coisas que lhes importa e ao leitor; a veracidade positiva dos acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que os cronistas divisam o mundo[14].

   Partindo das principais características que Moisés atribui à crônica, com efeito, podemos argumentar que, no texto de Freyre, a visão pessoal emerge com grande vigor, na medida em que o “eu” está presente de forma muito intensa, explicitando-se de forma irrefreável no final do conto, quando o escritor afirma: “Não parece que fosse o caso do barão pernambucano de quem as más línguas do Recife durante anos espalharam que era uma vez por outra ‘levado pelo diabo’”[15].

   Nesta passagem acima, a característica essencial de uma crônica, segundo Moisés, aparece de forma latente. Gilberto Freyre, após descrever os acontecimentos e demonstrar as circunstâncias, expõe de forma bem concisa sua perspectiva. Em outras palavras, de forma emotiva divisa o mundo, e coloca uma questão que será abordada mais adiante acerca da dúvida no pactário do barão. Nesse sentido, podemos dizer que o texto de Freyre é uma crônica[16].

   Cumpre ressaltar que, o autor de Casa grande & senzala[17], Sobrados e Mocambos[18] e Ordem e Progresso[19], também se aventurou na ficção demonstrando, assim, certo apreço por este ramo da escrita com obras como Dona sinhá e o filho padre[20] e O outro amor do dr. Paulo[21]. E ainda, suas inquietações atinentes ao diabo na sociedade brasileira, são expostas pela primeira vez em Casa grande & senzala, especificamente no capítulo dedicado às influências dos indígenas na formação da família brasileira. Freyre já apontava danças para o diabo ou “Jurupari” — denominação para o diabo entre os indígenas — com fito de amedrontar as mulheres e as crianças, conservando-as em ordem. O escritor evidencia que, de caráter moralizador e pedagógico, essas danças carregavam consigo um importante simbolismo, na medida em que máscaras utilizadas nesses rituais eram consideradas sagradas e de misterioso poder. Dando voz a Freyre, podemos verificar com maior riqueza de detalhes esses rituais:

   Eram máscaras imitando animais demoníacos nos quais supunha o selvagem transformarem-se os mortos, e sua eficácia mágica era aumentada pelo fato de serem humanos ou de origem animal muitos dos materiais de sua composição: cabelo de gente, pêlo de bichos, pernas etc. Por sua vez, o dançarino devia imitar os movimentos e vozes do animal demoníaco [...][22]

   Desse modo, esboçando o caráter da historicidade em sua análise, Freyre demonstra que os Jesuítas, ao chegarem ao Brasil, conservaram as danças indígenas para o “Jupari”, porém, lhe atribuindo um caráter cômico. Tal comicidade buscava o efeito de desprestigiar o controle social indígena ancorado na emblemática figura do diabo, bem como fomentar um outro modo de controle social: o do cristianismo, ancorado na figura de Deus. No entanto, mesmo resignificado e com alguns traços da cultura européia, o medo do diabo e de suas variantes personificações permaneceu candente na cultura brasileira a ponto de fundir-se em uma única tendência que arregimenta ao mesmo tempo o “Jupari” indígena e o diabo católico.

   Com efeito, tal medo do diabo é exemplificado pelo autor com os quase que instintivos interesses dos meninos brasileiros por “bichos temíveis”, pelos contos que amedrontam e pelas reincidentes narrativas de contato visual com “assombrações”, tanto por parte de descentes de indígenas, quanto por parte de europeus. Assim, Freyre demonstra que a cultura totêmica e animista do indígena marcou sensivelmente os traços do caráter do brasileiro, que é “por excelência o povo da crença no sobrenatural: em tudo o que nos rodeia sentimos o toque de influências estranhas, de vez em quando os jornais revelam casos de aparições, mal-assombrados, encantamentos”[23].

   Diante do exposto, podemos adentrar especificamente à crônica Um barão perseguido pelo diabo. A crônica de Freyre aborda a história de dois indivíduos do Recife que pactuaram com o diabo no século XIX: um, barão pernambucano muito conhecido, mas com posses distantes da cidade, o outro, um visconde morador no Recife. Toda a crônica do autor chega ao ponto derradeiro demonstrando que o esforço de ambos para livrar-se do pacto com o diabo foi infrutífero. Todavia, a diferença dos pactos tem um primado nessa crônica, e no corpo do texto podemos notar que há uma grande ênfase na história do barão em detrimento da do visconde.

   O barão, quando ia ao Recife desfrutava de todos os luxos que um lorde do período poderia desfrutar. Segundo Freyre, “[...] vida alegre e descuidada. Jantava no Tôrres. Divertia-se no teatro vendo cômicas. Ia afofado em carro de luxo às corridas do Piranga”[24]. Entretanto, “[...] de repente, recebia um sinal misterioso: era o chifrudo para ir encontrá-lo sozinho nas brenhas, tarde da noite — noite sem lua; e como que refrescar a assinatura no trato que levianamente fizera com o príncipe Negro”[25]. Algum tempo depois, voltava do encontro quase degenerado, porém, como era “homem respeitado e estimado” por seus parentes, recebia os devidos cuidados voltando a si aos poucos. Daí, há meses, recebia o chamado novamente.

   Esta especulação de Freyre leva em consideração a perspectiva do pactário enquanto um contrato que necessitava ser renovado de tempos em tempos, além de evidenciar que não havia logro do diabo, fator corriqueiro na literatura regionalista que se apropria do mito faústico, principalmente na literatura de cordel.

   Sobre o visconde, Freyre aborda que, “[...] quando morreu, o diabo ficou não só com sua alma como seu corpo. E que para fingir enterrá-lo em Santo Amaro, a família tivera que encher o caixão de pedra”[26]. Aqui aparece o viés do pactário que enfoca a proposta da venda da alma ao diabo[27] “pari passu” à perspectiva oral, segundo a qual o corpo do visconde também foi levado pelo diabo.

   Neste sentido, em oportuna passagem, Jerusa Pires Ferreira demonstra claramente a oralidade popular como mola propulsora dessa perspectiva de pacto, no qual a alma e o corpo são levados pelo demônio. Ao tecer asserções sobre os “causos” que enfatizam a temática, a autora afirma que, certa vez, um empregado rural, em São Gonçalo dos Campos, Bahia, contou-lhe “[…] da morte de vários ricos, que o ‘cão’ viera buscar pessoalmente, obrigando a família a encher o caixão com toros de bananeira, para evitar a vergonha de se carregar um caixão sem peso”[28].

   Seguindo esta linha de raciocínio, podemos notar que a oralidade popular carrega consigo um complexo de significações constituídas pelo imaginário. Nesse sentido, é inevitável dar voz a Cornelius Castoriadis. Ao estabelecer uma relação estreita entre memória e História, o filósofo aborda que de forma automática penetramos no campo do imaginário, uma vez que a história humana torna-se impossível de ser encarada fora desta categoria.

   Neste estudo acerca de questões que passam pela relação entre o imaginário e simbolismo infiltrando-se nas perspectivas de formação de instituições imaginárias, o Castoriadis conceitua imaginário como sendo a capacidade humana para a representação do mundo, com o que lhe confere sentido ontológico; sendo que, própria do ser humano, essa capacidade de criação e recriação do real forma uma espécie de energia criadora[29]. E ainda:

   A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora, do que nós chamamos o imaginário radical tal como se manifesta ao mesmo tempo e indissoluvelmente no fazer histórico, e na constituição, antes de qualquer racionalidade explícita, de um universo de significações[30].

   Ou seja, a essa condição de construção imaginária do real herdada pelos seres humanos, o filósofo denomina “imaginário radical” aquilo se materializa na fonte de todo o simbólico. Por conseguinte:

   O mundo social é cada vez constituído e articulado em função de um sistema de tais significações, e essas significações existem, uma vez constituídas, na forma do que chamamos o imaginário efetivo (ou imaginado). É só relativamente a essas significações que podemos compreender, tanto a ‘escolha’ que cada sociedade faz de seu simbolismo, e principalmente de seu simbolismo institucional, como os fins aos quais ela subordina a ‘funcionalidade’[31].

   Desta maneira, a atividade social que atribui sentido ao mundo, construída a partir das condições históricas e apoiada naquela energia criadora, recebe o nome de imaginário efetivo. Este, por sua vez, é sempre um imaginário simbólico, operando segundo lógicas próprias e conferindo existência significada ao real. Em suma, para Castoriadis existem dois estágios da formação do imaginário coletivo. O primeiro momento é o imaginário radical, o qual exprime a condição de construir o real; e o segundo é o imaginário efetivo, efetivando a atividade social que dá sentido ao mundo.

  Assim, a oralidade popular (imaginário efetivo) é essa atividade social que dá sentido aos “causos” (imaginário radical), cuja ordem do processo não é uma relação de causa e efeito, portanto, podendo alimentar-se reciprocamente. Este processo é de extrema importância na obra de Gilberto Freyre, pois seu aparato de informações é todo auferido na oralidade popular, isto é, no imaginário coletivo, cujas representações do real tomam formas de idiossincrasia.

   Freyre, ao utilizar termos como: “se conta”, “diz-se”, “ninguém explicava”, evidencia sua proposta de escrever o que lhe foi contado. Desse modo, enquadrar o narrador dessa crônica ao modelo de “narrador ideal”, exemplificado por Walter Benjamin com Nicolai Leskov[32], de modo algum, é irrelevante, mas, sim, ganha um automatismo preponderante. Para Benjamin, a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que todos narradores recorrem, assim, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos diversos narradores anônimos[33].

   Ao desmembrar algumas características do narrador, Benjamin faz a clivagem de dois modelos nos quais o narrador pode se enquadrar: ao dos viajantes, ao passo que, “quem viaja tem muito que contar”, e dos que não viajam muito, mas que, entretanto, são grandes conhecedores das histórias e tradições de seu país e de seu povo[34]. Nesse sentido, sem exorbitar os limites da arte de cotejar, podemos tecer correlações desses modelos de narrador a Gilberto Freyre. No que tange a sua “figura”, por si só, somos remetidos à sua posição de acadêmico estudioso da cultura brasileira, porém torna-se importante a evidência de que é nascido no Recife, local social que tanto fomentou suas preocupações sócio-culturais e suas enveredadas no âmbito das tradições. Esta ambivalência que Freyre congrega e que, de maneira indelével está presente em sua crônica, suscita-nos que esse autor é, sim, um narrador aos moldes que Walter Benjamim salienta.

   O narrador de Benjamim “[...] retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”[35]. A tradição oral é a mola propulsora da narrativa, mas também se alimenta desta, por vezes a resignificando, por outras, não. Nesta medida, inferimos que a crônica de Gilberto Freyre é exatamente isso, pois a tradição oral a alimenta, no entanto, não logrando um movimento conciso de causa e efeito, mas, sim, também podendo ser alimentada pela narrativa.

   A tradição oral, o movimento de contar as histórias e a perspectiva artesanal está presentes na crônica, engendrando uma narrativa que traz ao leitor o extraordinário e o miraculoso. Neste caso, os pactos elaborados por Gilberto Freyre são narrados com a maior exatidão, mesmo que paradoxalmente haja dúvidas, sobretudo no pacto do barão. Não impondo o contexto psicológico das ações dos personagens ao leitor, Freyre, por sua vez, “[...] é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”[36]. Gilberto Freyre busca na memória sua fonte para a crônica, e segundo Walter Benjamin,

   A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em ultima instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores [...][37]

   Desta forma, quando Freyre articula as histórias do barão e do visconde, é empreitado um movimento da memória que, a priori é difuso, porém permite ao leitor perceber o fio condutor da narrativa: o pacto. Este, desse modo, é o cerne das duas histórias, fomentador da crônica, cujos pontos nodais são tecidos em função de um projeto maior, ou seja, do projeto de narrar as histórias e diferenciar os respectivos pactos.

   Com efeito, podemos salientar que, nessa crônica, Gilberto Freyre demonstra a capacidade de narrador, particularmente aquele narrador abordado por Walter Benjamin. Um narrador que,

[...] pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida[38].

   Neste sentido, o fator de maior significação na crônica de Gilberto Freyre é a dúvida com relação ao pacto do barão. Segundo Freyre, o barão “[...] não era homem de quem dissesse: quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão”[39]. Sua explicação é de que havia entre os lordes da época gente mais gananciosa que o este barão, “[...] quem amasse o dinheiro ou fosse doente pelo ouro, ganho ou aumentado de qualquer modo: mesmo com a ajuda do diabo”[40].

   Dessa forma, é interessante observar aqui que, tanto na crônica de Gilberto Freyre, quanto em Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, há uma dúvida concernente ao pacto. A personagem Riobaldo, de Rosa, e o Barão, de Freyre, padecem da dúvida que os aniquila e atormenta: fizemos ou não o pacto? De imediato é inevitável a supremacia da metafísica e do esoterismo nas propostas concernentes ao pacto.

   Em Grande sertão: Veredas e em Um barão perseguido pelo diabo a singularidade de narrativas construídas sobre a dúvida/incerteza do pacto dá mostras da capacidade da literatura brasileira em apropriar-se do mito de Fausto de maneiras diferenciadas. Na obra salutar de Guimarães Rosa há o primado da incerteza do pacto em detrimento da soberba faustiana em busca do conhecimento total dos benefícios que o pacto traria para a personagem-narrador Riobaldo. Do mesmo modo, o Barão de Gilberto Freyre não se pergunta sobre o pacto, porém, sua história é contada sob uma perspectiva de dúvida na narrativa.Desse modo, o campo de destaque das duas histórias é o pacto com diabo, entretanto nos termos da dúvida, assim como das perspectivas deste provável pacto. Em resumo, da incerteza.

   Indubitavelmente, a preponderância da dúvida nos remete ao cotejo das duas histórias e, ao mesmo tempo, proporciona uma melhor observação de elementos convergentes nas narrativas. Em Guimarães Rosa, o temor da materialização da coisa ligada a pronuncia do nome faz com que o diabo ganhe vários pseudônimos na narrativa de Riobaldo. Nela aparecem: Arrenegado, Cão, Cramulhão, Indivíduo, Galhardo, Pé-de-Pato, Homem, Tisnado, Coxo, Temba, Azarape, Coisa-Ruim[41]. O mesmo ocorre em Gilberto Freyre quando o próprio narrador pronuncia-se a respeito do diabo, chamando-o de: Cornudo, Príncipe das Trevas, Chifrudo, Príncipe negro, Canhoto, Maldito[42]. Nesse sentido, surge uma outra dúvida que, certamente, não é tarefa simples de decifração. Será que Rosa e Freyre “nadavam na mesma corrente” com relação ao pacto faustiano?

   Contudo, à luz de um primeiro exame, podemos algumas informações sintéticas a esse respeito. A primeira edição de Um barão perseguido pelo diabo é de 1955, e a de Grande sertão: Veredas data de 1956. Estando Guimarães Rosa, em Minas Gerais, e Gilberto Freyre, no Recife. Aí está um frutífero campo a ser desbravado: Quais aproximações e distanciamentos podem ser retirados da perspectiva do pactário em Freyre e Rosa? Longe de lograr uma proposta perene de análise atinente à articulação desses dois autores, abre-se um campo de discussão importante. Com efeito, a proposta está lançada, cabendo agora aos “cérebros” estudiosos dessa imensurável literatura uma atenção maior a esses dois autores, não de forma isolada, mas, sim, em suas correlações.

Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) onde é Mestrando pelo Programa de Pós Graduação em História (PPHIS), integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC) e bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).

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