sábado, 3 de abril de 2010

As várias vidas de Nabuco
Intelectual, monarquista ferrenho e galanteador, o político pernambucano foi muito mais do que um defensor do fim da escravidão
                                                       Angela Alonso

   “O homem não é o mesmo durante o prazo da vida”. A observação do diário de Joaquim Nabuco retrata bem seu autor. Ninguém, prosseguia ele, é “por tempo considerável o mesmo, nem física, nem intelectualmente”. Mais conhecido por seu ativismo abolicionista, Nabuco foi vários: dândi, namorador, jornalista e político, intelectual monarquista e pai de família católico, embaixador e poeta.

   Sua primeira vida foi de dândi. Muito alto, encorpado, de olhos vivos e vastos bigodes, Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo era, antes de tudo, um homem bonito, que a educação aristocrática lustrou com elegância, boas maneiras e erudição. Do nascimento, em 1849, até os oito anos de idade, viveu com uma madrinha no Engenho Massangano, em Pernambuco, cercado de rezas e escravos. Foi então transportado para a vida de corte e o mundo da política, no qual seu pai, o senador José Thomaz Nabuco de Araújo (1813-1878), se destacava. Como rebento da elite imperial, Nabuco estudou nas melhores escolas – o Colégio Pedro II e as Faculdades de Direito de São Paulo e Recife –, que o prepararam para a carreira política. Teve uma juventude desocupada, dedicado aos versos, aos salões e às viagens, às roupas finas e às conquistas amorosas.

   Enquanto isso, o pai tramava seu futuro. Membro proeminente do Partido Liberal, candidatava os filhos em todas as eleições para deputado. A política imperial, segundo o próprio Nabuco de Araújo, se fazia de cima para baixo. Como o Brasil era então parlamentarista, o imperador escolhia um membro de um dos dois partidos – Liberal ou Conservador – para formar um gabinete, e o novo primeiro-ministro comandava as eleições e a apuração dos resultados, obtendo o apoio de “câmaras unânimes”, isto é, formada apenas por membros de seu partido. Assim, enquanto o Partido Conservador esteve seguidamente no governo, de 1868 a 1878, liberais, como os Nabuco, não tinham como se eleger. Na entressafra política, o pai conseguiu para Joaquim o posto de adido diplomático em Washington, de 1876 a 1877. Ocupação compatível com o gosto por viagens que acalentou a vida toda.

Nabuco não gostou dos norte-americanos, pouco afeitos aos requintes aristocráticos. A nobreza brasileira se mirava na europeia, admirando a cultura francesa e as instituições políticas inglesas, sua monarquia liberal e suas hierarquias nobiliárquicas. Nabuco pensava assim, desejando viver em Londres. Quando os liberais subiram ao Gabinete, em 1878, seu pai arranjou-lhe um posto no escritório da legação diplomática brasileira na Inglaterra e uma candidatura de deputado provincial por Pernambuco. Tudo isso fez água naquele mesmo ano, com a morte do pai. Começava ali sua segunda vida: a de político.

   No Rio de Janeiro, Nabuco encontrou a família endividada e indisposta com Sinimbu, o novo chefe de governo, o que ameaçava sua candidatura. Para garanti-la, teve que ir a Pernambuco e tomar a bênção do chefe liberal local, o barão de Vila Bela. Não sem ônus. A imprensa do Recife não lhe deu sossego, ridicularizando-o como “deputado inglês”, por não morar na província, e “candidato da pulseira”, por seu esmero na maneira de se vestir. Mesmo assim, conquistou seu primeiro mandato.

   O Parlamento era lugar sisudo, onde a oratória era moeda forte. Nabuco logo se fez notar pelo esmero retórico e os epílogos grandiloquentes. A agenda, em princípios de 1879, quando estreou, era uma reforma eleitoral que dividia os liberais. Mas quando a questão subiu aos debates do Senado, os debates na Câmara caíram em pasmaceira, e Nabuco exibiu seu senso de oportunidade. Na tribuna, levantou outro item do programa liberal, mas que estava longe de ser prioridade do gabinete: a escravidão.

   A conversa não era nova, entrava e saía ciclicamente da agenda. Tinha vindo à baila duas vezes no Segundo Reinado – em 1850, quando acabou formalmente a importação de novos escravos, e em 1871, quando se extinguiu sua reprodução em cativeiro, com a Lei do Ventre Livre. Medidas que causaram cisões nos partidos e discursos apocalípticos, associando o fim da escravidão ao fim da monarquia. Desde então, as instituições políticas calaram sobre o tema. Mas brados “emancipacionistas” seguiram avulsos em jornais e mesmo nos tribunais, por intermédio de Luiz Gama (1830-1882). Essas vozes se avolumaram num coro no fim da década, quando José do Patrocínio (1854-1905) começou a publicar artigos furiosos contra o escravismo.

   Nesse momento, em que havia já certa movimentação na sociedade – e silêncio no Parlamento –, Nabuco abraçou sua bandeira. Em 22 de abril de 1879, fez seu primeiro discurso abolicionista na Câmara: “Lembrai-vos de que uma grande desigualdade existe na nossa sociedade (...) deveis reconhecer que nesse sol há uma grande mancha que o tolda, pois ainda há escravos no Brasil”. Para surpresa de seu partido, apresentou projeto prevendo a extinção progressiva da escravidão até 1890, com indenização dos proprietários. Seguia os passos do pai, também emancipacionista, e inspirado pelos abolicionistas ingleses, queria formar uma coalizão na Câmara e fortalecê-la com o apoio da opinião pública. Colocava-se como pivô, entre as instituições políticas e o incipiente abolicionismo das ruas, de reformistas negros como Patrocínio, que, por não terem nascido na elite imperial, nunca chegavam ao Parlamento. Com outro negro, André Rebouças, (1838-1898) criou em 1880 a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, inspirada na congênere londrina, e lançou o jornal O Abolicionista. Promovia comícios de propaganda como os que vira na Inglaterra, e revelou-se orador apaixonado, cativando o público.

   Se seu pai fosse vivo, Nabuco teria parado por aí, para não pôr a perder a carreira parlamentar. Sem essa barreira, radicalizou suas posições a ponto de se incompatibilizar com o chefe de gabinete. Nas eleições seguintes, encontrou as portas da Câmara fechadas. Arrumou então uma vaga de correspondente no tradicional Jornal do Commércio. Entre 1882 e 1884 viveu em Londres, com seu bom gosto espremido pelos pequenos ganhos de jornalista e consultor jurídico de empresas inglesas com negócios no Brasil. Para dar conta das funções, acompanhava a economia, a geopolítica e as sessões do Parlamento britânico. Encantou-se com William Gladstone (1809-1898), o grande reformista do período, e tornou-se membro ativo da British and Foreign Anti-Slavery Society, a já então famosa organização antiescravista inglesa.

   Para o Brasil, enviou artigos, uma petição sobre a abolição e um livro de propaganda, O Abolicionismo, no qual denunciava a escravidão como o alicerce da sociedade, da economia e da política imperiais. Quando os abolicionistas conseguiram a abolição no Ceará e se formava um gabinete liberal simpático à causa – o de Manuel de Souza Dantas (1831-1894) – Joaquim Nabuco voltou.

   Foi seu auge. Inflamava comícios e escrevia diariamente nos jornais, intensificando a crítica à elite imperial. Em fins de 1884, o país se dividiu entre escravocratas e abolicionistas. O gabinete em crise chamou eleições. Foram as mais célebres do Segundo Reinado. Os abolicionistas tomaram as ruas, na primeira grande campanha eleitoral brasileira. Nabuco usou seu carisma para pedir votos de casa em casa, no Recife, e em comícios concorridos, rodeados por conservadores armados. No Teatro Santa Isabel, exaltava-se contra a “política do chicote”, que fazia do Brasil “um país de algumas famílias transitoriamente ricas e de dez milhões de proletários”. Agora queria abolição imediata e sem indenização aos proprietários. E a queria, como Rebouças, em par com uma reforma agrária.

   A eleição no Recife acabou em briga a bala entre conservadores e liberais, e foi anulada. Na nova campanha, Nabuco foi festejado em jornais, comícios e versos. Seu rosto foi impresso em lenços, cervejas e cigarros. Virou figura símbolo do abolicionismo. Mesmo assim, a Câmara não reconheceu sua vitória, e ele só ganhou o mandato quando deputados renunciaram, provocando um terceiro pleito.

   Mas os conservadores voltaram ao poder. Reduziram a reforma Dantas, que incluía várias medidas de emancipação paulatina, à libertação de escravos idosos – a Lei dos Sexagenários (1885). Muitos abolicionistas desanimaram das vias oficiais e passaram a fomentar fugas de escravos. Havia do outro lado uma grita federalista, com muitos grupos provinciais descontentes com a centralização monárquica. Nabuco lançou então o manifesto Abolição, Federação, Paz, endossando a federalização da monarquia, e escrevia panfletos cada vez mais ácidos. Na campanha de 1887, virou tema de carnaval e modelo de chapéu. Eleito, foi à Europa pedir apoio do papa à abolição – levava em conta a beatice de Isabel, a princesa regente.

   O abolicionismo recrudescia e a resistência esmorecia. João Alfredo Corrêa de Oliveira (1835-1915) chegou ao gabinete determinado a resolver de vez a questão, antes que o Império afundasse com ela. Apesar de conservador, teve apoio dos abolicionistas. Nabuco o ajudou a apressar o processo legislativo e aprovar num domingo, 13 de maio, o fim da escravidão no país. Nabuco foi então consagrado herói nacional, coberto por flores e chapéus atirados pela multidão. A festa durou pouco. Seu plano de aprofundar as reformas naufragou com o Império, condenado pelos republicanos e abandonado por muitos monarquistas depois da abolição.

   Na República, Nabuco começou sua terceira vida, de intelectual monarquista. Depois de curto exílio londrino, fundou, com outros políticos nostálgicos do antigo regime, um Partido Monarquista, mas, sem aliados e desempregado, confinou-se à casa, à família e ao catolicismo de infância. Saía quase que só para a roda de Machado de Assis, onde arquitetou sua identidade de homem de letras. Ao ver a sociedade aristocrática ruir, apegou-se à tradição imperial e a defendeu em livros. Em Balmaceda (1895) e em A Intervenção Estrangeira durante a Revolta da Armada (1896), criticou a sociedade republicana, seu militarismo, seu caudilhismo. E, valendo-se dos arquivos do pai, escreveu uma história do Segundo Reinado, Um Estadista do Império: a vida e as opiniões de Nabuco de Araújo (1897-1899), que é também um elogio ao sistema político deposto. Trabalho bem escrito, bem documentado, que fez sucesso de pronto e pavimentou as pazes de Nabuco com a vida pública.

   Quando Campos Sales consolidou a República civil, Nabuco ressuscitou para sua quarta vida. Desta vez, a de diplomata. Em 1899, aceitou convite para redigir a defesa do Brasil numa disputa com a Inglaterra a respeito da fronteira das Guianas e partiu para a Europa. Os monarquistas remanescentes o criticaram. Defendeu-se em Minha Formação (1900), onde se definia antes como liberal que monarquista. Em um texto nostálgico, que trafega entre o ensaio e a literatura, exprimiu sua adesão profunda ao modo de vida aristocrático em que se formara e que lhe permitiu cair nas graças da nobreza inglesa e das autoridades ianques. Embora tenha perdido a questão das Guianas, acabou se tornando sucessivamente chefe da legação brasileira em Londres (1900-1905) e primeiro embaixador brasileiro nos Estados Unidos (1905-1910). Em Washington, firmou relações excelentes com o secretário de Estado e com o presidente Theodore Roosevelt (1858-1919). Lá virou propagandista do pan-americanismo, isto é, da integração entre as Américas, visando sobretudo à aliança estreita do Brasil com os norte-americanos. Muito apreciado por políticos, senhoras e diplomatas, viajou pelo país em conferências pan-americanas e recebeu até títulos de doutor honoris causa, um deles da Universidade Yale.

    Voltou ao Brasil uma única vez, em 1906, para a Terceira Conferência Pan-Americana, que promoveu e presidiu. Estava meio surdo e acometido de policitemia – um aumento do número de hemácias no sangue –, que o mataria em 19 de janeiro de 1910. Mas era ainda um senhor galante, perfeito gentleman nas maneiras, conservador moderado nas opiniões, que circulou com desenvoltura pela nata da sociedade e arrebatou sua platéia. Como de costume, foi ovacionado.

Angela Alonso é professora da USP, pesquisadora do Cebrap e autora de Idéias em Movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império (São Paulo: Paz e Terra, Anpocs, 2002) e de Joaquim Nabuco: os salões e as ruas (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).


Amor demais

   Namorador contumaz, Nabuco teve caso com mulher casada, namorou firme uma americana e uma inglesa, mas se enganchou mesmo com Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930). Órfã riquíssima, de família de negociantes de café do Vale do Paraíba ligados ao Partido Conservador, Eufrásia era mulher elegante, independente, inteligente e voluntariosa. A diferença de patrimônio e a incompatibilidade política entre as famílias tanto atrapalharam quanto temperaram o romance, que se arrastou pelas décadas de 1870 e 1880, motivou quatro pedidos de casamento e vários rompimentos. Cansado do vai-e-vem e já à beira dos 40 anos, Nabuco se casou com Evelina Torres Soares Ribeiro (1865-1948), muito mais jovem, de boa família, mas menos abonada que Eufrásia. Evelina o levou de volta ao catolicismo e lhe deu cinco filhos. Eufrásia jamais se casou. Morou por décadas em Paris, onde era conhecida como a “dama dos diamantes negros”, mas morreu no Brasil. Reza a lenda que se fez enterrar sobre as cartas de amor de Nabuco.

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