sábado, 3 de abril de 2010

Mão negra, espada branca
Guerra no sul do Brasil fez Portugal recrutar “homens de cor”. Para algumas capitanias, eles eram uma ameaça maior que os espanhóis.



Por Luiz Geraldo Silva

   Em 1762, durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), a fronteira noroeste de Portugal foi invadida por forças francesas e espanholas. Graças ao auxílio inglês a campanha militar foi breve. Mas a fragilidade lusa ficou patente no conflito. Era preciso reformular sua arcaica estrutura militar. E isso era tarefa urgente, porque a Espanha continuava ameaçando suas fronteiras. Mas desta vez do outro lado do oceano.

   Desde a União das Coroas Ibéricas (1580), comerciantes das Américas portuguesa e espanhola haviam formado redes que continuaram existindo depois da restauração de 1640. Para garantir suas posições no comércio que ligava a região do Rio da Prata com o centro-sul do Brasil, Portugal criou a Colônia de Sacramento (1680), situada em frente a Buenos Aires, e a capitania de Rio Grande de São Pedro (1713). Os espanhóis atacavam estas posições sempre que podiam, tornando muito instável a situação daquelas fronteiras. A crise chegou ao auge quando, numa investida a partir de dezembro de 1762, forças espanholas lideradas por D. Pedro de Cevallos ocuparam a Colônia de Sacramento, os fortes de São Miguel e de Santa Tereza (no que viria a ser o Uruguai), e Rio Grande de São Pedro (atual Rio Grande do Sul). Tinha início o período da dominação espanhola no sul da América portuguesa.

   Era o momento de reagir, e Portugal contava com o homem certo para isso: Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), mais tarde conhecido como marquês de Pombal, tinha status de superministro e vinha empreendendo várias reformas desde que assumiu o cargo, em 1755. Com o agravamento da situação ao sul do Brasil, ele deu início a uma série de medidas militares e estratégicas para retomar o território.

   A primeira delas, já em 1763, foi a transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro. Mais central e mais próxima do palco da guerra, a nova sede do Vice-Reino receberia mais facilmente recrutas, munições e rações das outras capitanias, e os remeteria ao Sul. À capitania de São Paulo foi atribuído o papel de muralha entre os espanhóis e o cobiçado território das Minas. Finalmente, veio a Carta Régia de 22 de abril de 1766. Enviado a todos os governadores e capitães-generais, o comunicado mandou “alistar todos os moradores das terras da Vossa jurisdição que se acharem em estado de poderem servir nas Tropas Auxiliares, sem exceção de Nobres, Plebeus, Brancos, Mestiços, Pretos, Ingênuos e Libertos”.

   Ao contrário do exército profissional, que era fardado, armado e remunerado pela Coroa, os colonos alistados nas tropas auxiliares tinham que prover suas próprias armas, munições e fardamentos. A Carta Régia reconhecia que, até então, essas tropas pecavam pela “irregularidade e falta de disciplina”, mas apostava que, se fossem “reguladas e disciplinadas como devem ser”, constituiriam “uma das principais forças que tem o mesmo Estado para se defender”.

   O esforço de guerra pretendido por Pombal esbarraria num problema social: as relações escravistas e raciais no Brasil Colônia. Na década de 1760, negros livres e escravos formavam quase dois terços da população da América portuguesa, e na maior parte das capitanias havia mais negros do que brancos entre a população livre. Por isso, o resultado óbvio da convocação seriam corpos militares formados, em sua maioria, por homens de cor.

   Cada capitania respondeu à sua maneira ao chamado para a guerra luso-castelhana. Em Minas Gerais, o governador Luís Diogo Lobo da Silva (1763-1768) criou regimentos – chamados de “Terços” – apenas com pardos e pretos, determinando que eles deveriam ter seus próprios oficiais. Ordenou que os capitães-mores fizessem a contagem de todos os escravos de suas freguesias para formar, com a quinta parte deles, alguns “Terços de Negros Cativos”. E ainda sugeriu, para espanto local, que os senhores providenciassem armas de fogo para seus escravos recrutados. Várias câmaras de vilas consideraram essas medidas muito arriscadas. As de Caeté e Mariana, por exemplo, recusaram-se a armar e a formar tropas com o que chamavam de “inimigos domésticos dos brancos” e “bárbaros infiéis”.

   Em São Paulo, o recrutamento de pardos e pretos começara antes mesmo da publicação da Carta Régia de 1766. Em agosto do ano anterior, o governador D. Luís Antonio de Souza Botelho Mourão, o morgado de Mateus (1765-1775), determinara a formação de uma companhia de pardos na vila de Santos, uma de mulatos em São Sebastião e revelou intenção de criar outra tropa de pardos em São Vicente. Também colocou em marcha um projeto de armar com chuços (espécies de lanças) todos os escravos do litoral. Depois da Carta Régia, surgiram ainda mais corpos militares de homens de cor em São Paulo, como as Companhias de Mulatos de Taubaté e de Pindamonhangaba, a Tropa de Pardos de Jundiaí e as Companhias de Pretos da vila de Paranaguá.

   Mas o berço das tropas dos homens de cor era mesmo Pernambuco, pois a capitania já havia passado pelas guerras contra os holandeses de 1630-1635 (invasão) e 1645-1654 (restauração). A memória de Henrique Dias, mestre de campo das tropas negras naqueles conflitos, eternizara-se: seu nome fora adotado pelos batalhões de Pretos que surgiram em várias capitanias após sua morte, em 1662. Um século depois, estavam ativos dois corpos militares de homens de cor em Pernambuco. O de Pardos possuía 31 companhias e contava com 1.401 pessoas. O de Henrique Dias, exclusivamente formado por Pretos, contava com 17 companhias formadas por 1.549 homens. A Carta Régia de 1766 chegou à capitania no governo de Antônio de Sousa Manoel de Meneses, conde de Vila Flor (1763-1768). Ele decidiu estabelecer três novos corpos militares: um Terço Novo de Henriques, destinado exclusivamente aos Pretos, e dois Terços de Pardos.

   Os combates se intensificaram a partir de 1774. Os espanhóis, que já haviam conquistado o Rio Grande, avançaram até Santa Catarina. O Brasil tinha um novo vice-rei desde 1769, o marquês do Lavradio, que diante da situação solicitou a Pombal que militares de sua confiança assumissem o governo de algumas capitanias, ou fossem remanejados de umas para outras, e mandou aumentar o recrutamento para a guerra. O que gerou novos problemas.

   De São Paulo, tropas de Pardos e Pretos foram enviadas para as fronteiras do Mato Grosso. Determinou-se que todos os “homens solteiros, Brancos, Bastardos, Negros forros, e ainda os papudos [pessoas com bócio]... e todos os mal casados” serviriam em um mesmo corpo militar. As resistências por parte dos soldados brancos foram imediatas. Os de Itu protestaram contra o alistamento do filho de uma mulata em suas fileiras. Em Jundiaí, mães negras eram presas pelas autoridades caso seus filhos desertassem das tropas. Perfazendo apenas 25% da população da capitania e considerados novatos na região, os negros livres eram tratados como escória na capitania. As câmaras mineiras, por sua vez, aceitaram a existência dos Terços de Pretos e Pardos, mas reclamavam que eles fossem liderados por homens de cor.

   Para piorar o quadro, a situação das tropas era de evidente penúria. A maior parte dos 4.085 soldados enviados de Minas Gerais foi descrita como “vadios”. Somente 757 deles portavam armas de fogo. O restante utilizava lanças de pau tostado. Muitos estavam “inteiramente nus, sem mais que umas ceroulas e camisas”. O próprio vice-rei Lavradio, ao constatar que não estavam preparados para enfrentar uma guerra, acabou dispensando muitos soldados.

   A discriminação às tropas de cor não era a mesma em Pernambuco. Ao contrário, os Terços de Pretos e Pardos eram uma instituição respeitável. A Ordem Régia enviada para a capitania em maio de 1775, determinando novo recrutamento, fazia menção especial ao histórico de serviços prestados pelos homens de cor na capitania: “Sua Majestade conserva muito vivas na sua lembrança as gloriosas ações com que sempre se distinguiu o dito Terço”. Os que então o compunham deveriam “parecer não só descendentes, mas verdadeiros imitadores dos heróis que tanto o ilustram”. Retórica bem distante do que se viu: quase todos os recrutados estavam nus e poucos tinham armas. Muitas sequer funcionavam. A solução, como em Minas, foi fazer oitocentos paus tostados, recurso por sinal elogiado pelo governador, José César de Meneses, que se lembrava “de terem sido estas as armas de que aqui se usou durante a expulsão dos Holandeses, as quais os Pretos jogam com admirável destreza”.

   Os combates heróicos de Henrique Dias eram coisa do passado. Prova disso foi a reação dos soldados pernambucanos quando, no dia 7 de setembro de 1775, já preparados para partir, chegou ao Recife a suspensão da ordem de recrutamento. A guerra já estava em seu final. Pretos e Pardos correram “para suas casas, com tanta pressa que se atropelavam uns aos outros, soando por todas as ruas as festivas aclamações de viva El Rey Nosso Senhor”.

Luiz Geraldo Silva é professor da Universidade Federal do Paraná e autor de A faina, a festa e o rito. Uma etnografia histórica sobre as gentes do mar, sécs. XVII ao XIX (Campinas, Papirus, 2001).


Em outros fronts

   Recrutar pobres e negros para rechear as fileiras do exército foi a solução encontrada pelos governos brasileiros em outros conflitos. Na Guerra do Paraguai (1864-1870), as ações expansionistas do Império foram apoiadas por um exército composto em sua maioria por negros, índios, mestiços e escravos. Lutaram bravamente pela pátria, mas eram motivo de vergonha para seus superiores. Para o futuro duque de Caxias, comandante do exército, esses recrutas eram “exemplos imorais” e “contrários à disciplina e subordinação”. Chamados de macacos pelos soldados paraguaios, muitos foram enviados por pequenos proprietários que não tiveram outro recurso para evitar a ida aos campos de batalha e pagavam substitutos ou compravam escravos para irem à guerra em seus lugares. Famílias mais abastadas tinham outros meios de escapar de suas obrigações militares e ofereciam, sem qualquer contrapartida financeira, seus escravos como Voluntários da Pátria. O quinhão do governo imperial era composto pelos ditos “escravos da nação”, africanos trazidos ilegalmente para o país depois da proibição do tráfico em 1850, enviados sem dó para o front. O flagelo da discriminação étnica reapareceria nos anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Antes da partida para a Itália, os soldados negros que compunham a Força Expedicionária Brasileira (FEB) foram obrigados pelos seus oficiais a ocupar lugares internos nas formações. Já na Itália, durante uma visita do primeiro-ministro inglês Winston Churchill, novamente os negros receberam ordens de não se postar nas fileiras frontais da tropa. Reunindo negros, brancos, amarelos e pardos, a maioria pobre, desnutrida e franzina, a FEB era uma vitrine de curiosidades para os aliados, que não perdiam oportunidade de visitar o corpo brasileiro a fim de observar suas “esquisitices tropicais”.

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