segunda-feira, 19 de abril de 2010

VESTÍGIOS DO PASSADO: relatos e depoimentos de participantes da Guerra de Canudos

No vigor das batalhas ou nos anos posteriores a esta, muitos foram os relatos e depoimentos de atores, espectadores  e sobreviventes da Guerra de Canudos, que elucidam e ampliam os horinzontes do saber deste grande conflito no sertão da Bahia no final do século XIX

Samuel Lima

Testemunhas oculares:

Trecho do relatório do Tenente Pires Ferreira, Comandante da 1ª expedição contra Canudos, 21/11/1896 - Combate de Uauá.

A’s cinco horas da manhã do dia vinte e um, fomos surprehendidos por um tiroteio partido da guarda avançada, colocada na estrada que vae ter a Canudos. Esta guarda, tendo sido atacada por uma multidão enorme de bandidos fanaticos, reistiu-lhes denodamente, fazendo fogo em retirada. Por essa occasião o soldado da segunda companhia Theotonio Pereira Bacellar, que por se achar muito estropeado não poude acomlpanhar, a guarda foi degolado por um bandido. Immediatamente, dispuz a força para a defensiva, fazendo collocar em distancia conveniente do acantonamento uma linha de atiradores, que causou logo enormes claros nas fileiras dos bandidos. Estes, não obstante, avançaram sempre, fazendo fogo, aos gritos de viva o nosso Bom Jesus! Viva o nosso Conselheiro! Viva a monarchia! etc., etc., etc, chegando até alguns a tentarem cortar a facão os nossos soldados. Um delles trazia alçada uma grande cruz de madeira, e muitos outros traziam imagens de sanctos em vultos. Avançaram e brigaram com incrivel ferocidade, servindo-se de apitos para execução de seus movimentos e manobras."

Trecho do livro: Descrição de uma Viagem a Canudos, de Alvim Martins Horcades, 1899. Estudante de Medicina que vai para a Guerra como voluntário do Hospital de Sangue do Exército Republicano.

"Em uma dessas casas penetramos e a impressão foi a mais horrível: dezenas de homens, mulheres e crianças mortos quase todos à fome e sede e também quase privados da fala e de mistura com diversos corpos, que, gélidos adormeciam. Compungiu-me sobremodo a maneira por que estava uma menina de dez anos, tendo os lábios cobertos de pus e ressequidos pela sede que martirizava-a sentada debaixo de uma mesa, junto a uma velha, coberta de chagas,com uma bacia na mão, toda crivada de balas".

Relato sobre o massacre de prisioneiros de Canudos pelas tropas federais da Republica 

[...] Eu vi e assisti a sacrificar-se todos aqueles miseráveis (...) e com sinceridade o digo: em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros (...) levar-se homens de braços atados para trás como criminosos de lesa-majestade, indefesos e perto mesmo de seus companheiros, para maior escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora o de uma ave, e cortar com o assassino ferro o pescoço, deixando a cabeça cair sobre o solo - é o cumulo do banditismo praticado a sangue-frio (...) Assassinar-se uma mulher pelo simples fato de ser o seu companheiro conivente com o que se dava - é o auge da miséria! Arrancar-se a vida a uma criancinha (...) é o maior dos barbarismos e dos crimes que o homem pode praticar.

Trecho da reportagem enviada por Manuel Benício, Militar correspondente de guerra em Canudos para o Jornal do Comércio, Agosto de 1897.  

Informe de 6 de agosto de 1897.

"Certa incúria que tinha imperado desde o inicio da marcha da primeira coluna, dando lugar aos oficiais e praças não receberem ração desde Monte Santo, deixando que o comboio que vinha na retaguarda fosse assaltado, caindo nas mãos dos jagunços cerca de 200 mil cartuchos e carretas de víveres, provocando a carnificina horrorosa e sem proveito dos dias de 27 e 28 de junho no alto da Favela, a fome, a sede, flagelando os soldados que para não morrerem em conseqüência dela subiam pelos campos a carnear, morrendo centenas deles nas emboscadas dos inimigos."

 
Informe de 8 de agosto de 1897, reza:

"O General Artur Oscar age como entende, pouco atendendo à opinião dos companheiros. Devido a isto é que colocou-os nesta posição. " (...) Os jagunços reúnem até, nos cercados, bois e cabras e ficam ocultos por detrás dos cercos. Os famintos soldados arrojam-se sobre os ruminantes, matam-nos e eis que cheios de alegria tentam soltá-los, quando chove sobre eles uma saraivada de balas certeiras que fazem fugir os mais felizes.  Os jagunços então acabam de matar os feridos e saqueiam as munições deles."

Manuel benicio para o jornal do comércio

Diário de oficial morto em combate, achado por Manuel Benício e transcrito em seu livro, O Rei dos Jagunços, 1899.

"Como ruge este inferno tumultuosamente em desordem! Soldados sequiosos, esguridos, maltrapilhos,escassez de água, fartura de porcaria, burros que se devoram o pelo, clarins que tocam e que ninguém atende, cavaleiros que passam levantando o pó, resmungamento rouco de quem sucumbe à fome, respirações cansadas, gemidos pungentes, um brado ao longe, bois que mugem e morrem, mulheres de cócoras como múmias, falta de medicamento para os feridos nas malas da ambulância médica, um tiro desgarrado, uma ordem que não se cumpre, cavalos escavando o chão, todos varados de fome, feridos esmolando o que comer, burros lambendo a crosta da terra, ar de estupor nas fisionomias lúgubres, ambulância cheia de conserva, vinho, água do Setz e ovos em lata!- Um punhado de farinha senão eu morro! - Bangüês trazendo mortos e feridos com bicheiras, doentes no pó, oficiais deitados na poeira, praças ao pé, vento e sol canicular, poeira, exalação fétida, horrível, podre, dos cadáveres insepultos, animais assombrados em esparrame no meio do povo, gritos palavrões, ameaças, tudo sofre; a fome tortura, o calor queima, a sede abrasa, a poeira sufoca e olhos esbugalhados fitam o vácuo:
Quem os poderá fechar no meio estonteador deste inferno tumultuariamente em desordem?
 Morro da Favela 30-6-1897".

Depoimentos de sobreviventes de Canudos

Manuel Ciriaco, antigo morador de Canudos, declarou em 1947:

"No tempo do Conselheiro, não gosto nem de falar pra não passar por mentiroso, havia de tudo, por estes arredores. Dava de tudo e até cana-de-açúcar de se descascar com a unha, nascia bonitona por estes lados. Legumes em abundância e chuvas a vontade."

Honório Vilanova, sobrevivente de Canudos e irmão de Antônio Vilanova, um dos principais lideres conselheiristas, declarou ao escritor Nertan Macedo:

"Grande era a Canudos do meu tempo. Quem tinha roça, tratava da roça na beira do rio. Quem tinha gado, tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos, tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de rezar, ia rezar. De tudo se tratava, porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino. (MACEDO, Nertan. Memorial de Vilanova. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1964)










  

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